segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Antília

Lagoa das Sete Cidades

Antília é o nome de uma ilha mítica que no contexto das lendas celtas se identifica com a Ilha de Avalon ou com a Ilha Branca do Norte (Leuké, também chamada Ilha de Vidro), morada simbólica dos bem-aventurados e Terra dos Vivos que , tanto na mitologia atlântico-ocidental como extremo-oriental, aparece assimilada a uma montanha habitada por príncipes e sábios que conhecem a arte de bem governar e onde “não se chega nem por mar nem por terra”, visto que só “o voo do espírito permite atingi-la”.


Antília será na tradição portuguesa a morada do rei D. Sebastião, pois, da mesma maneira que o rei Artur virá um dia das brumas de Avalon, D. Sebastião regressará numa manhã de nevoeiro…

Diversas vezes se estabeleceu, também, a associação entre a ilha de Antília e a de Sete Cidades (Septem Ciuitates) e também com a Atlântida.

domingo, 29 de agosto de 2010

Mistérios femininos: o corpo como vaso sagrado



Imaginamos o Graal como um cálice e, a maior parte das vezes, como o cálice cheio de vinho que Jesus ergueu na Última Ceia."Este é o meu sangue..." - as suas palavras e atitudes passaram a estar ritualizadas na comunhão cristã. Quando pensamos que, como recipiente arredondado, um cálice é um símbolo feminino, a ideia de um vaso cheio de sangue sugere o útero feminino e, então, o Graal adquire a possibilidade de um outro significado - o de um símbolo feminino sagrado ou misterioso, algo de transformador e curativo, com uma dimensão venerável ou divina do feminino.

Neste novo milénio, a Deusa emerge de novo - a preocupação com o planeta e a sua ressacralização, a nova avaliação do aspecto feminino da divindade, o conhecimento intuitivo da sacralidade e da sabedoria do corpo. A Terra começa novamente a ser olhada como um organismo vivo - Geia, a deusa da Terra dos Gregos. O regresso da consciência da Deusa é um regresso do Graal, mas ainda no limiar, na bruma... porém, já apercebido por muitos...

A necessidade do regresso ao Graal e à Deusa é uma história simultaneamente individual e global, que incide sobre feridas e curas, sobre esperança, integralidade e união com o todo. Se somos seres espirituais percorrendo um caminho humano, e não seres humanos que podem estar a transitar por um caminho espiritual, então a vida não é só uma jornada mas também uma busca, uma peregrinação ou uma demanda. O labirinto, como imagem, e a Lenda do Graal, como história, são alegorias que nos podem ajudar a perceber a dimensão espiritual da nossa vida.

Na Lenda do Graal, apenas três dos muitos cavaleiros que partem de Camelot o vêem realmente: Galahad, Parsifal e Bors. Galahad, o cavaleiro puro, encontra o Graal e deixa a terra numa nuvem de êxtase; Parsifal, o tolo inocente, regressa ao Castelo do Graal e torna-se no novo Rei e Guardião do Graal; Bors, o homem terra-a-terra, regressa a Camelot para contar a história. Os três cavaleiros representam três maneiras de abordar o mistério. Para Galahad, está reservado o caminho do Espírito, a comunhão directa com Deus-Pai; para Parsifal, o caminho da dedicação, do Coração, que obriga a um percurso longo e difícil na direcção da auto-realização;e, para Bors, que observa os acontecimentos, mas se mantem um pouco afastado destes, o caminho da contemplação, da Mente.

Espírito, Coração e Mente são os três caminhos representados pelos três cavaleiros que encontram o Graal. A possibilidade de experimentar o Graal através do corpo foi ignorada. Que o sagrado possa passar pelo corpo é negado em todo o lado pelas regiões patriarcais. Ora, os mistérios femininos são do corpo.

Num contexto espiritual, um mistério é uma verdade religiosa que apenas se pode saber por revelação. Vem da palavra grega mystes, que, antes do Cristianismo, estava associada a Elêusis, o recinto sagrado da deusa-mãe Deméter e sua filha Perséfone. O iniciado passava por uma profunda experiência transformadora que ele, ou ela (ambos os sexos participavam), tinha de manter em segredo. Para não poder ser revelado por palavras, ao longo de tantos milhares de anos, é porque o mistério deve ter sido a experiência em si, uma revelação inefável que transformava o participante num iniciado que nunca mais temeria a morte.

Sabemos que o mito de Deméter e Perséfone celebra a reunião da deusa-mãe com a filha, que fora raptada por Hades para o Mundo Inferior. Pode partir-se do princípio que, assim como o Cristianismo é uma religião de mistério pai/filho, assim os mistérios euleusínios mãe-filha tratavam da morte e regresso - como ressurreição, renascimento ou reunião - e que, de certo modo, o iniciado podia compartilhar do destino da deidade que ultrapassara o reino dos mortos.

Para se ser iniciado num mistério, há que haver, psicologicamente, uma experiência mística que nos modifique. Deixa-se de se ser o que se era antes. É frequente uma iniciação ter uma faceta de isolamento, de confronto com o medo, ou uma provação. Mas também pode surgir como uma dádiva da graça, em que uma beleza profunda apareceu num momento sublime do qual fizemos parte. A morte da antiga forma e a nova vida, ou nascimento, são fundamentais nas iniciações.

A gravidez pode ser uma experiência iniciática. Simbolicamente, a rapariga morre para surgir a mãe grávida. Uma mulher grávida compartilha, mesmo sem o saber, da essência da Deusa como criadora, que concebeu toda a vida a partir do seu próprio corpo. As palavras dirigidas à Virgem Maria podem muito bem ajustar-se à sua experiência:" Abençoada sou eu entre as mulheres, e abençoado o futo do meu ventre." Estas palavras dão voz à sabedoria intuitiva e mística que pode emergir nas mulheres no momento da revelação, quando compreendem que são unas com a Deusa. Quando assim acontece, a gravidez é uma barca que transporta a mulher para Avalon e o reino da Deusa, através das brumas.


Uma mulher grávida será transformada pela experiência que lhe afecta corpo e psique, sendo significativo o potencial renascimento de que é alvo - aquilo em que ela se transformará em consequência dessa viagem. A gravidez pode ser assim como a criatividade que surge quando mergulhamos nas nossas próprias profundezas e somos transformados enquanto executamos uma obra - um trabalho criativo que brota da alma e é filho desta.

A experiência maternal também se aprofunda na amamentação que pode ser vista como uma comunhão sagrada. Uma mãe que aleita o filho está a expressar sem palavras "toma, come, este é o meu corpo; bebe, este é o meu sangue", porque é literalmente do corpo e do sangue que é feito o leite feminino.

Os mistérios femininos são do corpo e da psique. Uma mulher não tem de ser uma mãe biológica para se tornar uma iniciada na faceta maternal da Deusa. Por instinto, pode doar aos outros um útero psicológico. Pode fazê-lo numa profissão em que preste auxílio ou ensine, ou como esposa, mãe ou amiga. Pode também dar à luz um trabalho criativo, que lhe vem do útero da sua experiência pessoal em que foi obrigada a sondar as suas próprias profundezas como mulher, a labutar para o dar ao mundo.


Se a gravidez é uma iniciação, a menarca, a menstruação e a menopausa são mistérios do sangue. Mas para a fisiologia se tornar em mistério, uma mulher tem de se sentir, compreender-se ou imaginar-se como Mulher, como Deusa, como uma encarnação do princípio feminino; uma tarefa bastante dificultada, ao longo dos tempos, pela sociedade patriarcal. Há outro mistério de sangue iniciático: a desfloração de uma virgem, que sangra quando do rompimento do hímen. Contudo, esta experiência física precisa de ter uma componente sagrada para realmente iniciar a mulher. Ela não se transforma automaticamente numa mulher sapiente ao perder a virgindade. Se se aperceber de que está a participar num momento sagrado no qual ela e a deusa (neste caso, Afrodite) são uma só, será possível então passar por uma experiência sacramental nas relações amorosas. 

Tal como uma mulher entrega o seu corpo para ser um receptáculo na gravidez, de certa maneira, as mulheres que são mediums místicas tornam-se no cálice donde pode emergir a consciência - assim funcionavam, por exemplo, as sibilas ou as pitonisas de Delfos. Nesse momento específico, elas estão a dar à luz a consciência da Deusa.


Quando a mulher encara o seu corpo como manifestação viva da Deusa, e se transforma assim numa iniciada dos mistérios femininos, então passa a saber que é portadora de um cálice sagrado e que o Graal se manifesta em si.


Referência Bibliográfica:

BOLEN, Jean, Travessia para Avalon, Planeta Editora, 1995

sábado, 28 de agosto de 2010

Um certo sofrimento natural

No século XII, quando o Amor Cortês estava no seu auge, um escrivão ao serviço de Marie de Champagne, filha da rainha Leonor da Aquitânia, compôs um livro de regras que codificavam as convenções pelas quais todo o amante se devia reger. Chamou-lhe A Arte do Amor Cortês e nele assim definiu o amor:


Love is a certain inborn suffering derived from the sight of and excessive meditation on the beauty of the opposite sex, which causes each one to wish above all things the embraces of the other and by common desire to carry out all of love's precept in the other's embrace.

Isto descreve a intensidade da paixão evidenciada pelos heróis arturianos e as suas amadas, embora não desvende o mistério que a alimentava. Uma outra citação de Gottfried von Strassbourg, que escreveu a melhor versão medieval de Tristão e Isolda, acrescentou-lhe uma outra dimensão. Nesta história, os amantes escaparam e encontraram refúgio na floresta de Morrois onde levam uma vida idílica juntos. Adornando a versão original, Gottfried descreve detalhadamente uma caverna fantástica onde o par vivia:
This grotto was round, high, and perpendicular, snow-white, smooth, and even, throughout its whole circumference. Above, its vault was finely keyed, and on the keystone there was a crown most beautifully adorned with goldsmiths' work and encrusted with precious stones. Below, the pavement was of smooth, rich, shining marble, as green as grass. At the centre was a bed most perfectly cut from a slab of crystal... dedicated to the Goddess of Love. In the upper part of the grotto some small windows had been hewn out to let in the light, and trough these the sun shone in several places.

O autor oferece-nos a interpretação acerca deste maravilhoso lugar. É circular, largo, alto, símbolo da simplicidade e poder do amor, e da sua aspiração a ser mais alto que as nuvens. A coroa incrustada de pedras preciosas representa as virtudes do amor e a cama de cristal simboliza a transparência e a translucidez de todo o amor verdadeiro. Neste lugar, o amor de Tristão e Isolda é honroso, ao contrário da perspectiva que o  mundo exterior dele tem.

O amor não correspondido e todo o sofrimento daí advindo também tinha o seu lugar na convenção do Amor Cortês. A trancendência espiritual decorrida do desgosto amoroso encontra a sua melhor  representação no mundo arturiano através do morrer de amor da Lady de Shalott.

O amor também é alegria e o seu exemplo pode transformar os outros. Gottfried diz:
If the two of whom this love-story tells had not endured sorrow for the sake of joy, love's pain for its ecstasy within one heart, their name and history would never have brought such rapture to so many noble spirits.
No final, a paixão humana torna-se inspiradora. Podemos ainda aprofundar o sentido desta mensagem se encararmos os amantes humanos como representantes dos deuses. Estes últimos experienciam todos os aspectos do amor através dos seus "substitutos" humanos. É através do amor que os deuses conhecem melhor o mundo mortal e que se fortalece a interacção entre os mundos, mantendo abertos os canais que medeiam entre o divino e o humano.

Não é por acaso que tanto Tristão como Lancelot amam rainhas. Numa passagem de Perceval,de Chrétien de Troyes, Gawain refere-se assim a Guinevere:
Just as the wise master teaches young children, my lady the queen teaches and instructs every living being. From her flows all the good in the world, she is its source and origin. Nobody can take leave of her and go away disheartened, for she knows what each person wants and the way to please according to his desires.
O que os trovadores transmitiam nas suas canções e poemas era então o seguinte: é o elemento divino contido nas mulheres que inspira os homens a actos grandiosos. Deste modo, a cavalaria é alimentada pelo amor, tal como o amor se alimenta do serviço prestado por todos aqueles que seguem rigorosamente as regras da cavalaria.

O amor torna-se assim uma Iniciação. Também não é por acaso que muitas figuras femininas do ciclo arturiano pertencem ao domínio mágico, ao Outro Mundo. Ao cortejá-las, adorá-las e até ao casar com elas, os heróis partilham desta herança e os mundos aproximam-se aos níveis físico, emocional e espiritual. A própria Demanda do Graal não mostra mais do que outra face do amor...

O amor e o encontro entre os dois Mundos (How they met themselves, de Dante Gabriel Rossetti)

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Viriditas



O poder enverdecedor do Graal

Viriditas, ou poder enverdecedor, são termos teológicos criados por Hildegarda de Bingen (1098-1179). Hoje conhecemo-la através dos escritos de Matthew Fox. Este diz-nos que Hildegarda usava viriditas como sinónimo de benção para se obter fecundidade e criatividade. Para si, a salvação, ou cura, era "o regresso do poder enverdecedor e da humidade". No ensaio "Viriditas: Greening Power", em Illuminations of Hildegard of Bingen, Fox escreve:


"Hildegarda faz contrastar o poder enverdecedor ou humidade com o pecado de secar. Uma pessoa que secou e uma cultura que secou perderam a capacidade de criar. É por isso que, para Hildegarda, secar é um pecado tão grave - interfere com a nossa vocação enaltecida para criar. "Só a Humanidade é chamada a criar", declara ela.
Viriditas... é a frescura de Deus que os seres humanos recebem nas suas forças vitais - espiritual e física. É o poder da Primavera, uma força germinadora, uma feminidade que vem de Deus e penetra toda a criação. Essa poderosa força vital encontra-se tanto no reino humano, como no que o não é. "A terra sua, gerando potência com os seus próprios poros", declara ela.
Em vez de ver corpo/alma numa luta aguerrida, como fez Santo Agostinho, Hildegarda vê que "a alma é a frescura da carne, porque o corpo cresce e viceja por meio daquela, tal como a terra se torna fecunda através da humidade". Maria, a mãe de Jesus, é homenageada por ser a viridissima virga, o mais verde dos ramos verdes, o mais fecundo de todos nós. Ela é um ramo "cheio do poder enverdecedor da Primavera", e, neste pensamento, ressoam profundos sons harmónicos da tradição da deusa, na religião."
O verde e o Graal estão relacionados com a cura e a divindade. Nos textos alquímicos, a benedicta viriditas (a verdura abençoada) era um sinal do início da reanimação do material: mostrava que a vitalidade estava a regressar ao processo. Em The Grail Legend, Emma Jung e Marie-Louise von Franz descrevem a ligação entre o verde e o Graal:

"Como cor da vegetação e, num sentido lato, da vida, o verde está obviamente em harmonia com a natureza do Graal... Num simbolismo eclesiástico, o verde é a cor do Espírito Santo (o consolador) ou da anima mundi, e na linguagem dos místicos é a cor universal da divindade."
Na lenda do Graal, o rei precisa curar a ferida para o verde voltar a uma terra árida. É um velho, com uma ferida na coxa. O local da ferida sugere que perdeu a ligação à sexualidade, fertilidade, gerabilidade e criatividade, sofrendo do que Hildegarda considerava o pecado fundamental da secura ou aridez. Na sua correspondência com arcebispos, bispos, abades e sacerdotes, o Rei dos Pescadores da sua época, ela incitava-os a permanecer "molhados, húmidos, verdes e suculentos" e a permitir que lhes entrasse no coração "orvalho misericordioso", para abolir a secura.

Estar-se molhado, húmido, verde e suculento, é estar-se emocionalmente vivo. O corpo expressa sentimentos autênticos por meio da humidade: lágrimas de alegria ou prantos de mágoa, risos tão intensos que os olhos lacrimejam, ou se marejam quando certas emoções são afloradas ou recordações vêm à tona. As depressões do Rei dos Pescadores, pelo contrário, são emocionalmente áridas, de olhos secos, e sem humidade.

Hildegarda de Bingen também disse que deveríamos ser "verdes". Estar-se "verde" em relação a qualquer coisa é ser-se jovem e inexperiente. Contudo, só sendo-se verde e inocente, só tendo uma parte de nós que está verde, ou redescobrindo-a, se pode ser um Percival, um tolo ingénuo que consegue entrar no Castelo do Graal, ou ser-se a criança com entrada no Reino de Deus ou no Jardim da Deusa.


A promessa da Primavera, e o retorno da verdura a uma terra estéril, é também uma possibilidade psicológica simbolizada pelo regresso da deusa-donzela Perséfone a sua mãe, Deméter. Hildegarda descreve Maria como possuindo esse efeito de Persefoniano sobre a psique, quando escreveu: "Tu o rebento florescente, o mais verde... tu trazes frescura luxuriante", mais uma vez aos ressequidos e definhados do mundo. No Egipto, a Deusa-Mãe é Ísis, e é o regresso do seu divino filho da morte e do desmembramento que se equaciona como o reverdecimento anual do Vale do Nilo e com uma promessa simbólica semelhante. Osíris é a única divindade egípcia que tem o rosto verde.

As depressões da meia-idade e os bloqueios criativos acabam quando nos tornamos verdes e suculentos. Então, a vida fica cheia de interesse e vitalidade. Fascina-nos o jogo de ideias, imagens e sentimentos que nos leva a ser criativos, inovadores e inventivos. Nesse espírito e com um coração aberto, podemos amar outra vez.

in Travessia para Avalon, de Jean Shinoda Bolen, Planeta Editora, 1995


Hildegard von Bingen - Viridissima  (Jocelyn Montgomery - Lux Vivens)

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Quando eu sonhava


Carlos Schwabe

Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.

Agora, que estou desperto,
Agora a vejo fixar...
Para quê?- Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrela incerto,
No imenso firmamento,
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava - mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia...

in Folhas Caídas, de Almeida Garrett

Conde Nilo

Frederick William Burton, Meeting on the turret stairs

Conde Nilo, conde Nilo
Seu cavalo vai banhar;
Enquanto o cavalo bebe,
Armou um lindo cantar.
Com o escuro que fazia
El-rei não o pode avistar.
Mal sabe a pobre da infanta
Se há-de rir, se há-de chorar.
– «Cala, minha filha, escuta,
Ouvirás um bel cantar:
Ou são os anjos no Céu,
Ou a sereia no mar.»
– «Não são os anjos no Céu,
Nem a sereia no mar:
É o conde Nilo, meu pai,
Que comigo quer casar.»
– «Quem Fala no conde Nilo,
Que se atreve a nomear
Esse vassalo rebelde
Que eu mandei desterrar?»
– «Senhor, a culpa é só minha,
A mim deveis castigar:
Não posso viver sem ele..
Fui eu que o mandei chamar.»
– «Cala-te, filha traidora,
Não te queiras desonrar.
Antes que o dia amanheça
Vê-lo-ás ir a degolar.»
– «Algoz que o matar a ele,
A mim me tem de matar;
Adonde a cova lhe abrirem,
A mim me têm de enterrar.»


Por quem dobra aquela campa,
Por quem está a dobrar?
– «Morto é o conde Nilo,
A infanta já a expirar.
Abertas estão as covas,
Agora os vão enterrar:
Ele no adro da igreja,
A infanta ao pé do altar.»
De um nascera um cipreste,
E do outro um laranjal;
Um crescia, outro crescia,
Coas pontas se iam beijar.
El-rei, apenas tal soube,
Logo os mandara cortar.
Um deitava sangue vivo,
O outro sangue real;
De um nascera uma pomba,
De outro um pombo torcaz.
Senta-se el-rei a comer,
Na mesa lhe iam poisar:
– «Mal haja tanto querer,
E mal haja tanto amar!
Nem na vida nem na morte
Nunca os pude separar.»

Almeida Garrett, Romanceiro

Wagner - Tristão e Isolda


Wagner - Prelúdio e Morte de Isolda - conduzido por Toscanini (1951)

Lamento de Tristão


Lamento di Tristano - Hesperion XXI

Tristão e Isolda - Parte V

Tristão sobreviveu ao seu mergulho no mar e preparou uma emboscada aos captores de Isolda, quando estes a levavam para a floresta. Não teve dificuldade em salvá-la, tento Tristão e Isolda vivido muitos meses na floresta, como proscritos. Os efeitos da poção amorosa, que fora preparada para durar três anos, estavam a desaparecer: tinham compartilhado um sonho maravilhoso e estavam a acordar, num mundo de dura realidade. O seu amor um pelo outro tornou-se real, mas o mesmo aconteceu com a sua forte sensação de remorso, por terem ferido o coração do rei Mark.

Tristão decidiu que devia deixar a Cornualha e ir para a Bretanha, e Isolda regressou a Tintagel, tendo jurado lealdade ao marido. Pouco tempo depois, Isolda, da torre, viu um pequeno barco que navegava para sul, ao longo da costa, e ficou a saber que nunca mais voltaria a ver Tristão vivo.




Tristão desembarcou na Bretanha, com o seu companheiro Gorvenal,, tendo-se ambos oferecido como guerreiros ao rei local, cujo nome era Hoel. Tristão, que nunca mais se importou com a vida ou com a morte, provou imediatamente a sua coragem, numa batalha contra uma tribo vizinha. Nessa noite, durante o banquete da vitória, o rei Hoel levantou-se e anunciou: "Hoje vi um novo herói, completamente temerário em combate; como recompensa, ofereço-lhe a mão da minha filha, Isolda das Mãos Brancas." Tristão, com a bebida, sentia-se agora tão temerário como estivera durante a luta. Olhou para Isolda das Mãos Brancas, que corara até ficar da cor da dedaleira que cresce nos charcos, o que lhe fez lembrar uma outra Isolda. Nessa noite dormiram juntos, mas Tristão não conseguiu fazer amor, tendo o coração distante. A desculpa encontrada foi que sofria de um ferimento antigo.

Isolda das Mãos Brancas tolerou a falta de interesse do seu marido e até começou a gracejar acerca disso com as suas aias. Um dia, andava ela à caça, com o seu irmão Kaherdin, quando, ao saltarem uma vedação, a lama esparrinhou e salpicou-lhe as coxas: "Ora!", exclamou, rindo. "Até a lama está mais interessada em mim do que meu marido." Então, nessa noite, Kaherdin interrogou Tristão e descobriu a verdadeiraa razão da sua frieza. Tristão fez Kaherdin jurar silêncio, prometendo que faria todos os esforços para esquecer o seu primeiro amor.

No dia seguinte, o forte de Hoel sofreu um ataque de surpresa e Tristão foi gravemente ferido. Isolda das Mãos Brancas não tinha as potentes ervas curativas de Isolda, a Bela (como os homens da Bretanha chamavam à rainha da Cornualha). Tristão, compreendendo que iria morrer, a menos que a própria Isolda viesse até ele, entregou uma mensagem a Gorvenal para que este a levasse à Cornualha: "Diz aos homens da Cornualha que estou a morrer de uma ferida envenenada e que só a rainha Isolda pode curar-me. Vai no meu barco e, se voltares com Isolda, iça a vela branca, mas, se ela não vier, deixa a vela negra." Isolda das Mãos Brancas ouviu por acaso a mensagem e soube, finalmente, onde estava o coração ausente de Tristão.

Alguns dias mais tarde, Tristão estava cada vez mais fraco e às portas do mundo dos mortos. Subitamente, ouviu o vigia do forte do rei Hoel gritar que um barco estava à vista. "Qual é a cor da vela?", perguntou à sua mulher. Isolda sentiu o ciúme avassalá-la. "É negra, meu senhor", respondeu. O coração de Tristão não aguentou e rebentou, quando Isolda, a Bela, e o rei Mark chegaram a correr ao seu quarto. Isolda inclinou-se sobre o seu amante morto e, ouvindo mentalmente os sons da sua harpa, cantou:


O Sol brilha, claro e belo,
E posso ouvir a doce canção dos pássaros;
Todos à minha volta cantam nas moitas
E os seus cantos são novos.

Vejo chegar a minha própria morte,
E canto uma balada que será considerada a mais querida,
E que não deixará de tocar os amantes,
Pois é o amor que me faz desejar morrer.


Tristão, meu amigo, amigo, amigo,
Aqui está o meu coração que confiei
Ao teu amor; não é um bom lugar para ele,
E agora morrerá pela tua espada.

Tristão, meu amigo, amigo, amigo,
Muito embora os deuses desprezem o meu desejo,
A minha alma habitará no teu espírito,
Nas terras dos bem-aventurados ou no Mundo dos Mortos.

Deixando-se cair sobre a espada de Tristão, Isolda seguiu-o para o Mundo dos Mortos. Assim, com a morte, os amantes regressaram ao forte do rei Mark, em Tintagel. Foram enterrados lado a lado, e os ramos entrelaçados de duas árvores cresceram das suas sepulturas.



in Mitologia Céltica, de David Bellingham, Editorial Estampa, 1999

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Tristão e Isolda - Parte IV

O barco chegou a Tintagel e Isolda agradou imensamente ao rei Mark. Contudo, não foi com Isolda que dormiu na noite do casamento. Tristão teve consciência de que o rei viria a descobrir não ter sido o primeiro a possuir Isolda: por isso, persuadiu Brangaine a esgueirar-se para o leito nupcial, no momento em que as luzes fossem apagadas. Assim começaram os muitos enganos que iriam levar, finalmente, à descoberta do amor secreto entre Tristão e Isolda, pois os amantes não podiam estar longe um do outro, por mais esforços que fizessem. Tanto Tristão como Isolda se sentiam muito culpados, pois cada um deles tinha grande afeição por Mark; porém, a poção mágica fora planeada para durar três anos e era demasiado forte para que pudessem resistir.

Aqueles que sempre tinham tido inveja de Tristão encontravam, agora, uma maneira de o desfavorecer. Não lhes foi difícil despertar as suspeitas do rei, pois Tristão e Isolda estavam sempre a namoriscar, por cima da mesa, durante os banquetes. Particularmente um homem, Andret, que acalentava um secreto desejo por Isolda, esperava que, um dia, os amantes fossem descobertos. Os rumores aumentaram e Mark expulsou Tristão da corte. Mesmo assim, os amantes não se afastaram. Havia uma nascente, num pomar, fora das muralhas de Tintagel, que corria como um regato para dentro do forte; Tristão escondia-se no topo de uma árvore do pomar e atirava para o regato flores no Verão ou raminhos no Inverno, assinalando assim a Isolda que estava à sua espera. Andret pediu a um druida que visse através das estrelas, se os dois continuavam a ver-se. O druida viu tudo no céu nocturno: o pomar, as flores no regato e Isolda esgueirando-se do forte.




Um dia, o druida predisse que iria ter lugar um encontro amoroso, enquanto o rei andasse à caça do javali, nessa noite. Assim, Andret planeou fazer o rei regressar mais cedo, antes da madrugada seguinte, altura em que era esperado. Tristão e Isolda encontraram-se entre os aromas nocturnos das flores do pomar, enquanto Brangaine, como de costume, ficava de vigia na torre, por cima do quarto de Isolda. Quando os primeiros alvores da madrugada tingiam já o céu estrelado, Brangaine cantou:

Deus da luz, que tornas as coisas verdadeiras e claras,
Por favor, sê fiel e ajuda os meus companheiros,
Pois não os vejo desde o crepúsculo
E dentro em breve será madrugada.


Bons companheiros, se estão a dormir ou acordados,
Não durmam mais, meus amos, por favor.
Porque no céu do Oriente a estrela sobe,
Aquela que anuncia o dia, que eu sabia que viria,
E dentro em breve será madrugada.


Bons companheiros, o meu canto está a chamá-los,
Não durmam mais, pois já oiço o pássaro a cantar
Enquanto olha o dia por entre os bosques.
E eu receio que o homem ciumento esteja à vossa procura,
E dentro em breve será madrugada.

Tristão devolveu-lhe o canto:

Linda e doce companheira, tão rico é este lugar,
Que eu desejaria que nunca fosse madrugada ou dia.
Pois a mulher que estreito nos meus braços
É a mais bela que alguma vez uma mãe deu à luz,
E é por isso que pouco me importo
Com o louco ciumento e a madrugada...

O canto de Tristão foi interrompido pelo rei Mark e pelos seus guerreiros, que tinham entrado silenciosamente no pomar, guiados por Andret. Os dois amantes foram presos e a sua punição foi imediatamente pronunciada: Tristão e Isolda seriam queimados, num poço de ramos a arder. A caminho do local da morte, foi permitido a Tristão fazer uma oferta de apaziguamento aos deuses encolerizados, sobre uma rocha sagrada, acima do mar. "Salva-te!", gritou Isolda. "Se viveres, também eu viverei na morte." E Tristão saltou para o mar; o rochedo era tão alto que todos os que o viram saltar o consideraram morto. O único som audível era o grito das gaivotas.

"Um belo sacrifício a Mannanan, o deus do mar", disse Mark, e Isolda foi levada para o poço da morte. Um grupo de homens enfermos, que vivia na floresta em redor de Tintagel, aproximou-se do local. "Uma vez que a rainha Isolda tem de morrer", disse um deles, com o rosto hediondamente picado das bexigas, "por que não a deixar connosco, para nosso prazer. Em breve morrerá e a sua morte apaziguará os demónios que trouxeram a doença para as tuas terras". Isolda foi libertada e levada dali.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Tristão e Isolda - Parte III

Havia já várias semanas que Tristão começara a recuperar, com a ajuda das ervas de Isolda. Esta sentia-se cada vez mais atraída por este estranho que, mesmo na sua cama de doente, tocava harpa tão maravilhosamente. Para ela, era curioso que um tal menestrel fosse também um valente guerreiro, pelo que desejou de todo o coração que sobrevivesse ao veneno do dragão e a pedisse como prémio.

Chegou o dia de sair da cama e, enquanto Tristão tomava banho, Isolda limpou-lhe a armadura. A falha na espada chamou-lhe a atenção e ela correu ao quarto em busca do fragmento embrulhado em seda que, ainda não havia muito tempo, retirara da cabeça do seu tio; o fragmento ajustava-se perfeitamente à falha na espada do menestrel. Naquele momento, os sentimentos de amor de Isolda por Tristão transformaram-se em ódio. "Finalmente, os deuses trouxeram-te até mim", disse-lhe. "Tu és o homem que assassinou o meu tio Morholt. Nesse dia aziago, em que percebi que as minhas ervas não tinham poder sobre a morte, jurei que um dia teria a minha vingança".

"Matei Morholt em combate", disse Tristão, "e no interesse do meu rei. Não houve perfídia na morte de teu tio, mas esta triunfará, se me matares, pois, então terás de casar com o camareiro que reivindica ter morto o dragão. Sou o único homem que pode provar que ele está a mentir." Isolda saiu enfurecida do quarto e, nessa noite, nenhum deles conseguiu dormir.

No dia seguinte, a corte reuniu-se para ouvir o camareiro apresentar o seu pedido oficial de Isolda. "Não foi tarefa fácil", disse, erguendo a cabeça do dragão, "mas não sofri quaisquer ferimentos e todos defenderei, igualmente, quando chegar o próximo monstro." "És tu esse monstro mentiroso", gritou Isolda, "e aqui está o homem que realmente matou o dragão." Tristão foi introduzido no salão. "Que o prove!", disparou, rancorosamente, o camareiro.

"Este cobarde tem a cabeça", disse Tristão, "mas eu  tenho a língua mortal. Sou Tristão, real sobrinho do rei da Cornualha. Fui mandado aqui para descobrir a dona deste cabelo dourado, e penso que, ao matar o dragão, a encontrei." Tristão ergueu bem alto a língua do dragão numa das mãos e o cabelo na outra. Todos os homens e mulheres presentes ficaram sufocados, pois a língua era medonha e o cabelo lindo: e todas as cabeças se voltaram do intimidado camareiro para a princesa Isolda.


"O teu rei terá Isolda como sua rainha", disse o rei irlandês, "e que este casamento traga a paz entre os nossos dois países." Um dia antes de partirem para a Cornualha, a mãe de Isolda deu a Brangaine uma poderosa poção de amor. "Vais ter de deitar metade disto no vinho do rei da Cornualha, e metade no da minha filha, na noite do seu casamento. Isto fará com que fiquem ligados pelo amor."

O barco largou do porto de Dublin e Isolda manteve-se na popa a olhar o pôr do sol, em tons de vermelho e ouro, sobre a sua terra, enquanto desta se afastava. Durante dois dias o mar foi percorrido pelos carros triunfais da tempestade de Manannan, o deus do mar; no terceiro dia, os ventos amainaram, fazendo-se sentir uma estranha calmaria. O sol dardejava sobre Tristão e Isolda, enquanto se divertiam com um jogo de bordo para passar o tempo: Isolda ainda não falava com Tristão. Chamou Brangaine, para lhes trazer, do cesto de viagem, uma refrescante bebida de ervas. Beberam, como era costume, da mesma tigela. Enquanto bebiam, o vento soprou de novo e as velas enfunaram, as ondas levantaram-se e os borrifos salgados salpicaram os seus cabelos. As suas mãos tocaram-se, quando passaram a tigela um ao outro, primeiro timidamente, e, depois, inebriados pela paixão que a bebida lhes inspirou. Brangaine, por engano, servira-lhes a poção amorosa.

in Introdução à Mitologia Céltica, de David Bellingham, Editorial Estampa, 1999

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Tristão e Isolda - Parte II

Morholt morreu durante a travessia para casa, tendo havido grande pesar na Irlanda pela morte do seu herói. A filha do rei, cujo nome era Isolda, aprendera com sua mãe as propriedades mágicas das ervas. Quando, com as suas práticas, tentava fazer reviver Morholt, extraiu um pedaço de metal afiado da cabeça fracturada. Envolveu-o em seda, sabendo que um dia iria descobrir a espada de que provinha: nesse dia vingaria o tio.

Tristão sofreu um pequeno ferimento, produzido pela lança de Morholt, mas não sabia que esta fora previamente mergulhada num dos venenos preparados por Isolda da Irlanda.. A ferida começou a infectar e, em breve, ninguém se sproximou mais do quarto de Tristão devido ao cheiro pestilento. Tristão sabia que o antídoto para o veneno estava algures além do mar, pelo que ele próprio se fez ao oceano, onde se deixou arrastar muitos dias. Manannan, o deus do mar, olhou por ele e soprou suavemente o seu barco na direcção da Irlanda. Quando a terra apareceu à vista, Tristão pegou na sua harpa e cantou. O povo de Dublin ficou espantado ao ver um barco sem piloto. À medida que este se aproximava, ouviram os sons suaves de uma doce harpa e uma voz que cantava. A música enfeitiçou-os, puxaram o barco para terra e levaram o menestrel ferido, que disse chamar-se Tantris, para a corte. Foi lá tratado pelas aias da princesa Isolda e curado pelas suas ervas: mas os dois nunca se encontraram.

Na Cornualha, havia muito que Tristão fora dado como morto, pelo que foi grande o regozijo quando do seu regresso; mas, na corte de Mark, havia alguns que tinham inveja da afeição que o estranho Tristão inspirara no rei e que planeavam arranjar uma esposa para Mark, na esperança do nascimento de um filho, qe herdaria a Cornualha. O rei estava ao corrente das suas maquinações e, um dia, encontrou uma razão para adiar o casamento para sempre. Era o começo do Verão e Mark estava sentado junto a uma janela, olhando o mar. As andorinhas voavam baixo, por cima dos penhascos, e uma destas deixou cair um fio de ouro rosado no seu regaço. Mark enrolou-o nos dedos e percebeu tratar-se de um cabelo de mulher. Na festa dessa noite, Mark mostrou o longo cabelo louro e disse: "Muitos dos presentes desejam ver-me casado; porém, não casarei com mais ninguém a não ser com a dona deste cabelo. Haverá grandes recompensas para o homem que a descubra e a traga para a Cornualha." "Por ti matei Morholt", disse Tristão, "e para ti encontrarei uma esposa."
                                                                                                           
Dragão, estampa de Escher

Tristão partiu de Tintagel, com os seus amigos, num barco à vela. Manannan soprou uma grande tempestade, que os fez naufragar na costa, perto de Dublin. Os homens de Lothian disfarçaram-se de mercadores e deambularam pelos mercados, procurando ouvir quaisquer indícios quanto à dona do cabelo dourado; porém, as novas não eram de mulheres mas de dragões. Os campos em redor de Dublin estavam a ser devastados por um monstro cuspidor de fogo e o rei da Irlanda oferecera a mão da sua filha Isolda ao homem que lhe trouxesse uma prova da morte da criatura. Instintivamente, Tristão partiu em busca do dragão, seguindo a terra chamuscada na direcção do seu covil, onde se sentou à espera do regresso do monstro.

Estava Tristão a contemplar a Lua Cheia quando, contra esta, apareceu a sombra negra do dragão. O ar aqueceu quando ele se aproximou e Tristão pôde vê-lo, à luz do luar, quando voou na direcção da caverna. Era um dragão branco, com enormes asas e uma longa cauda pontiaguda; ao longo da espinha corria uma linha de espinhos venenosos e os dentes eram como lâminas cintilantes. Tristão enfrentou o monstro, que rugiu e projectou ondas de fumo branco pelas narinas, que o envolveram numa névoa. Tristão nada pôde ver, até que, de repente, a nuvem foi rasgada pelas fauces abertas do dragão. Tristão reagiu rapidamente e mergulhou-lhe a sua lança nas goelas, descrevendo o salto do salmão até ao pescoço, p or forma a cortar a língua bífida e envenenada do dragão. Pôs a língua dentro da meia e partiu para Dublin; porém, o calor do seu corpo fez sair o veneno e Tristão perdeu os sentidos, na passagem que levava ao covil do dragão.

O camareiro do rei irlandês, que desejava secretamente Isolda, estivera a observar toda a luta, do alto de uma árvore; com um machado, decepou a cabeça do dragão e levou-a ao rei, exigindo o seu prémio. Isolda estremeceu ao pensar num casamento com este homem, que era considerado um mentiroso e um cobarde por muitos dos cortesãos. Assim, foi com a sua mãe e Brangaine, a sua aia, ao covil do dragão; encontraram lá Tristão, inconsciente, com a língua bífida na mão. Então, ajudando-se umas às outras, trouxeram-no de volta à corte. Brangaine reconheceu-o então como sendo Tantris, o menestrel que tinham acolhido meses antes.

in Introdução à Mitologia Céltica, de David Bellingham, Editorial Estampa, 1999

domingo, 22 de agosto de 2010

Tristão e Isolda - Parte I

O rei Mark era governante da Cornualha e ali construiu um forte, em Tintagel, uma fortaleza inexpugnável, num alto promontório rochoso, que abarca o mar da Irlanda. A Cornualha estava em guerra com a Irlanda, pelo que o aliado de Mark, Rivalin de Lothain, fez-se à vela, desde a Escócia, para se juntar à luta. Como sinal de gratidão, Mark permitiu que Rivalin regressasse a Lothian, levando a sua irmã como esposa. Esta morreu ao dar à luz um filho que, nascido num ambiente de mágoa, recebeu o nome de Tristão.

Tristão foi educado por Gorvenal, um douto e considerado membro da corte de Rivalin; o rapaz aprendeu todas as artes do combate e da diplomacia, da caça e da natação. Um dia, quando Tristão estava sentado nos penhascos, tocando a sua harpa para as aves marinhas, Gorvenal viu que o rapaz estava apto: "Jovem Tristão", disse, "ensinei-te tudo o que sei, pelo que chegou agora o momento de veres o que fica além dos limites de Lothian." "Mas para onde direi?", perguntou Tristão. "Para onde os ventos te empurrarem e para onde o teu coração te guiar".

Assim, Tristão, com o seu tutor Gorvenal como companheiro, fez-se à vela para a terra da sua mãe, na Cornualha. Quando se aproximaram do forte de Tintagel, Tristão voltou-se para os seus homens: "Ninguém", disse ele, "dirá a este nobre povo quem sou eu. Pois, se vou ser recebido por eles, deve ser com o respeito pelo meu comportamento e não pelo meu título real."

O rei Mark recebeu-os honrosamente no seu castelo e, nessa noite, convidou-os para um banquete. Quando o vinho já estava a correr, voltou-se para os seus hóspedes: "Desconhecidos", disse, "digam-nos quem são e de onde vieram." "Viemos do Norte", respondeu Tristão, " e os nossos pais são mercadores, mas nenhum de nós tem inclinação para o comércio, pelo que nos oferecemos como guerreiros ao teu serviço." Depois, Tristão tocou e todo o salão ficou em silêncio, escutando o som melodioso da sua harpa. "Poderão ficar aqui à vontade", disse o rei Mark.

Durante mais de um ano, Tristão e os seus homens de Lothian permaneceram em Tintagel. A guerra com a Irlanda tinha terminado com um tratado, pelo qual Mark prometia enviar um tributo anual ao rei da Irlanda. Com a chegada dos guerreiros de Lothian, Mark decidiu recusar os pagamentos, que consistiam na escravização de jovens rapazes e raparigas da Cornualha, chegando, assim, o momento por que Tristão esperava para se revelar ao rei.

A lança envenenada de Morholt, ilustração de Franciani Roos

Aparecera na Irlanda um novo campeão, que era Morholt, irmão da rainha irlandesa e um grande guerreiro. Tristão foi o primeiro a ver o barco de Morholt a navegar na direcção de Tintagel e sabia ao que vinha. Morholt fundeou o seu barco e enviou uma mensagem ao rei, exigindo o tributo. "Não o terá", disse Tristão, "sem um combate". Como não havia outros voluntários para enfrentar Morholt em combate singular, Mark concordou com o pedido de Tristão para o fazer, com a promessa de que seria elevado à nobreza da Cornualha se fosse bem sucedido.

Morholt aceitou o desafio, embora impusesse a condição de o seu adversário ser de estirpe real igual à sua. Tristão já não podia esconder, por mais tempo, à corte de Tintagel, a sua identidade real: "Eu sou filho do rei Rivalin de Lothian", disse, "e sobrinho do rei Mark da Cornualha." O rei Mark ficou ao mesmo tempo feliz e aborrecido ao saber que este belo jovem era filho da sua irmã e que, no entanto, estava a arriscar a vida pela Cornualha. Contudo, Tristão não seria dissuadido e ficou assente que a luta teria lugar numa pequena ilha, em frente de Tintagel.

Na alvorada do dia aprazado, Tristão remou em direcção à ilha e, vendo o barco de Morholt varado na praia, abandonou o seu e avançou pela água para terra. Morholt ficou claramente perplexo com este comportamento: "Por que razão empurraste o teu barco para o mar?" perguntou. "Só um de nós deixará hoje esta ilha", respondeu Tristão, desembainhando a espada e desferindo o primeiro golpe.

As aves marinhas foram as únicas testemunhas deste longo e sangrento combate. O último golpe pertenceu a Tristão: a sua espada penetrou no elmo de Morholt, fendendo-lhe o crânio. Morholt foi retirado da ilha no barco irlandês, enquanto Tristão voltou no pequeno barco a remos para Tintagel, onde houve muito regozijo nessa noite. Porém, Tristão estava estranhamente perturbado: a sua espada lascara-se e faltava um pequeno fragmento.

in Introdução à Mitologia Céltica, de David Bellingham, Editorial Estampa, 1999

Tristão e Isolda (Introdução)


Isolda e Tristão beberam incautos um filtro do amor que lhes fortificou a paixão nascente, unindo-os por um trágico e inquebrantável laço. A representação de Duncan retrata o ambiente celta (nos pormenores das vestes e nos entalhes na madeira) e a natureza intensa e eterna do amor de ambos. (Tristão e Isolda, de John Duncan, tela, 1912)

A história de Tristão e Isolda sofreu muitas transformações desde que apareceu, pela primeira vez, nos tempos célticos pagãos. Foram escritas centenas de versões diferentes, desde o período medieval, versões estas que culminaram com uma das maiores expressões do Romantismo do século XIX, a ópera de Wagner Tristão e Isolda. Os modernos eruditos têm atribuído estes relatos mais tardios a dois elementos literários medievais primordiais: a poesia do século XII do anglo-normando Thomas d' Angleterre e do alemão Eilhart von Oberg, e os romances em prosa da França do século XIII. Duas outras versões, do século XII, pelo poeta francês Beroul e um curto episódio anónimo, A Loucura de Tristão, não foram utilizados pelos autores mais tardios.

Estas cinco narrativas derivaram, provavelmente, de uma versão escrita original, já desaparecida. Esta hipotética primeira versão escrita deve ter constituído o culminar de uma tradição oral que remonta aos contadores de histórias célticos pré-cristãos. Os argumentos da sua origem céltica assentam, principalmente, na topografia da história, que nos leva através da maioria das primitivas áreas célticas, embora dos episódios passados na Bretanha céltica mais recente também tenha surgido uma adaptação pós-cristã.

Tristão procurou humildemente o Graal, embora duvidasse das hipóteses que teria de o encontrar por causa da sua paixão ilícita por Isolda. A dada altura da sua demanda, encontrou um esplendoroso castelo iluminado e animado de música. Contudo, foi tristemente escorraçado por um raio ardente de luz, pois apenas os mais puros podiam obter o Graal. (Ilustração de Evelyn Paul, c.1900)



As narrativas medievais situavam o castelo do rei Mark da Cornualha em Tintagel, com as suas conotações arturianas: por volta do século XIII, a história tornou-se parte do caudal da lenda arturiana. A terra nativa de Tristão era Lyonesse, nas primeiras versões: a tradição localiza esta terra perdida ao largo da costa da Cornualha, havendo aí muitas lendas locais de florestas e de sinos repicando no fundo do mar. Lyonesse poderá também ter sido um nome mítico (deriva da divindade solar céltica Lugh) para a zona píctica de Lothian. 
Numa versão da história, Tristão salta do alto de uma janela para escapar à prisão e regressar para junto da sua amada Isolda.



Os patronos literários medievais, tais como Leonor da Aquitânia, encorajavam os seus trovadores a produzir novas versões das velhas histórias de amor, que tanto realçariam a ideologia contemporânea do "amor cortês", como as alinhariam com o comportamento religioso corrente. A tendência para os "reaparecimentos medievais", a que a Europa do século XIX assistiu, inspirou as interpretações românticas dos poemas redescobertos. A principal fonte de Wagner foi o poema alemão de Gottfried von Strassburg (c. 1210), embora a história tenha uma relevância pessoal para Wagner, ao reflectir a sua própria aventura amorosa com a melhor amiga de sua mulher, Mathilde Wesendonck. Tennyson e outros poetas vitorianos também produziram versões da história.

Tristão e Isolda, encantados por um filtro de amor, contemplam-se arrebatados. Numa versão da história, os dois já se tinham apaixonado antes de beberem a poção, que apenas serviu para lhes desinibir os escrúpulos. Esta ilustração vitoriana capta a natureza extrema do amor cortês. (Ilustração de Evelyn Paul, 1900)

A subjacente natureza céltica pagã da história nunca se perdeu: é difícil cristianizar ou submeter inteiramente uma história que trata de uma aventura amorosa adúltera. Muitos ainda acreditam que a poção de amor foi um acrescento pós-cristão, que forneceu uma desculpa para o comportamento pecaminoso dos amantes. Contudo, parece mais provável que esta seja uma interpretação cristã de uma característica céltica original, pois os expedientes mágicos são comuns na mitologia céltica e reflectem o ritual religioso druídico.

Tristão e Isolda apegaram-se obsessivamente um ao outro depois de terem acidentalmente bebido um filtro do amor destinado a Isolda e ao seu noivo, o rei Mark da Cornualha. Os amantes malditos viveram um romance trágico e desesperado, assolado pela culpa e desejos impossíveis - encarnando o aspecto mais negativo do amor cortês (Tristão e Isolda, de A. W. Turnball, tela, 1904) 

O crescimento e as aventuras heróicas de Tristão lembram as façanhas do irlandês CuChulainn e do galês Pryderi. Do mesmo modo, a forte e intransigente caracterização de Isolda e, de facto, o próprio enredo básico encontram paralelo nas histórias da irlandesa Deirdre e da galesa Branwen. Não há uma versão "autêntica" de Tristão e Isolda: alguns dos principais pormenores da história diferem de uma para outra narrativa e as motivações das principais personagens variam de acordo com as intenções do poeta e da audiência. A versão em prosa que aqui vai ser apresentada omite elementos medievais e cristãos. Contudo, estão incluídas algumas baladas de trovadores franceses medievais a fim de realçar a narrativa à maneira céltica.

Tristão teve de se exilar na Bretanha depois de ser expulso da corte do rei Mark, na Cornualha. Lá, serviu o rei Hoel e casou com a sua filha, Isolda das Mãos Brancas. Depois da morte de Tristão, a sua mulher atirou-se de um penhasco, motivada pelo desespero de o seu amor nunca ter sido correspondido.

A donzela do Graal e a Deusa

O Graal que pode curar o rei, o Graal que desapareceu do mundo está na posse da donzela do Graal, que o transporta na procissão do mesmo. Se um cavaleiro inocente o vir e perguntar o que tem o rei ou a quem é útil o Graal, então, segundo a lenda, o rei será curado pelo Graal e o ermo recuperará.
Há um paralelo mitológico entre o ermo da Lenda do Graal e a terra devastada onde não cresceria vida nova até uma furiosa e sofredora Deméter arrancar a filha, Perséfone, ao Mundo Inferior. Esta e a donzela do Graal são símbolos semelhantes: a Primavera, o regresso da verdura à terra, virão através delas. O seu desaparecimento é um motivo de aridez e de uma falta de vida: o reaparecimento tanto duma como doutra reanima a terra morta.  (Ilustração de Howard David Johnson)
Perséfone, no seu mito de deusa raptada, era designada por a Kore ou a Donzela. Acho que isso se ajusta ao que eram de facto: a faceta de donzela da Grande Deusa, outrora homenageada, trinitária como Donzela-Mãe-Anciã, cujo culto foi abolido por seguidores dos deuses patriarcais judio-cristão e muçulmano.

Perséfone foi raptada por Hades, rei do Mundo Inferior. A donzela do Graal pode ser considerada tão cativa como Perséfone. Ambas desapareceram do mundo. Embora Perséfone estivesse cativa no Mundo Inferior que Hades governava, este não podia fazer com que ela o amasse. O rei do Graal encontra-se numa posição igual. Embora senhor do castelo, o Graal que o curaria, que a donzela do Graal transporta, está para lá do seu poder de exigência.
Tanto o Rei dos Pescadores como Hades governam reinos onde não existe vida. Os seus reinos são um ermo e uma terra dos mortos. Só se Perséfone voltar à mãe desgostosa, Deméter, a terra frutificará mais uma vez. Só se um cavaleiro entrar no castelo do Graal e disser o que tem de ser dito, o Graal curará o rei e recuperará o ermo. Só se estas condições forem cumpridas, a Mãe Natureza, Deméter, a Deusa, reanimará o reino estéril. Só então a Deusa-Mãe regressará e cumprirá as suas funções. A donzela transporta o Graal, que é o vaso curativo, nutriente e uma representação simbólica da Deusa. A Kore tem de ser reunida à Mãe, que pode, uma vez mais, ser quem fornece à terra a verdura, a agricultura, e a dadora do Mistério cujos iniciados não mais temiam a morte.
A Deusa das Ilhas Britânicas druídicas e a Deusa da Antiga Europa são uma e a mesma. Quando nós, seres humanos, deixámos de lhe prestar culto, também perdemos a ligação à terra como sagrada, deixámos de estar sintonizados com as estações e toda a vida, perdemos uma espiritualidade encarnada. Com o domínio dos deuses do Pai do Céu, o domínio exercido sobre a Terra e tudo o que era vida (incluindo as mulheres) foi considerado um direito divino dos homens - supostamente criados à imagem de Deus. Todavia, na linguagem simbólica do mito, o conhecimento da Deusa abolida foi conservado, tal como os sonhos "lembram" em linguagem simbólica o que o ego suprime.
A falta de significado e a depressão seguem-se, muitas vezes, a esse desligamento do Graal e da Deusa. Para curar o seu ermo, o indivíduo tem de restabelecer uma ligação vital com a Natureza Mãe, ou a Deusa-Mãe, ou o arquétipo da mãe no seu aspecto positivo. Esse elo é simbolizado por Perséfone, a Kore, ou pela donzela do Graal. Para as mulheres, a Donzela é a filha sagrada da Grande Mãe, através da qual têm uma sensaçã íntima de que a divindade e a feminilidade estão ligadas. Para os homens, a Donzela é outra designação para a anima, ou imagem da alma, a etiqueta de Jung para a faceta feminina nos homens.
in Travessia para Avalon, de Jean Shinoda Bolen, Planeta Editora

sábado, 21 de agosto de 2010

Romance de Avalor



















Pela ribeira dum rio
que leva as águas ao mar
vai o triste de Avalor,
não sabe se há-de tornar.
As águas levam seu bem;
ele leva o seu pesar.
Só vai e sem companhia,
que os seus fora deixar:
que quem não leva descanso,
descansa em só caminhar.
Descontra onde ia a barca
se ia o sol abaixar;
indo-se abaixando o sol
escurecia-se o ar;
tudo se fazia triste
quanto havia de ficar
Da barca levantam remos
e ao som do remar
começaram os remeiros
do barco este cantar:
"Que frias eram as águas!
Quem as haverá de passar?"
Dos outros bancos respondem:
"Quem as haverá de passar
senão quem a vontade pôs
onde a não pode tirar."
Trás a barca o levam olhos
quanto o dia dá lugar.
Não durou muito, que o bem
não pode muito durar.
Vendo o sol posto, contra ele,
soltou os olhos ao chorar;
soltou rédea a seu cavalo,
da beira do rio a andar:
e a noite era calada
pera mais o magoar,
que o compasso dos remos
era o do seu suspirar:
querer contar suas mágoas
seria areias contar.
Quanto mais se ia alongando,
se ia alongando o soar:
de seus ouvidos aos olhos
a tristeza foi igualar.
Assi como ia a cavalo
foi pela água dentro entrar;
e dando um longo suspiro
ouvira longe falar:
"Onde mágoas levam alma,
vão também corpo levar":
mas indo assi por acerto
foi c'um barco n'água dar,
que estava amarrado à terra
e seu dono era a folgar.
Salta assi como ia dentro
e foi a amarra cortar:
a corrente e a maré
acertaram-no ajudar.
Não sabem mais que foi dele
nem novas se podem achar,
suspeitou-se que era morto,
mas não é para afirmar,
que não no embarcou ventura
para isso o foi guardar.
Mas são as águas do mar
de quem se pode fiar.

Bernardim Ribeiro  ( Romanceiro, de Almeida Garrett )

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Avalon

A ILHA DAS MAÇÃS

É virtualmente impossível estudar as tradições relativas a Artur e ao Graal sem encontrar o Outro Mundo. Nas suas aventuras, os cavaleiros desviam-se constantemente dos domínios humanos para entrarem no mundo sobrenatural e serem testados. No Outro Mundo, ou no Mundo-Além, as leis naturais não prevalecem e tudo é possível.

Nenhum outro lugar é tão evocado no Outro Mundo celta como Avalon. Derradeiro lugar de repouso de Artur, é lá que ele aguarda a chamada para novamente servir a terra, para terminar o trabalho que ficou por concluir depois do final da Demanda do Graal e da batalha sangrenta de Camlan que exterminou a Confraria da Távola Redonda.



Muitos tentaram descobrir a localização deste lugar encantado e, desde a Idade Média, que Glastonbury - this holiest earth -  lhe é associado. A tradição determina que foi lá que José de Arimateia, o portador do Graal, estabeleceu a primeira comunidade cristã na Britânia. E por lá viveram algum tempo São Patrício, Santa Brígida e São Columba.

Talvez não seja sensato atribuir um espaço físico a Avalon. Mas no tempo remoto dos senhores da guerra celtas, quando Somerset era conhecido como "The Summer Country" e quase não se destrinçava do Mundo-Além, Glastonbury era conhecida como Yniswtrin, o nome galês interpretado como A Ilha de Vidro, governada por Avalach, também chamado Rex Avalonis. Na tradição galesa, ele é o pai de Morgana, descrita como "The Royal Virgin of Avalon" - referindo-se este título à sua condição de guardiã hereditária e não a uma descrição literal.

Yniswitrin tornou-se Avalon, a Ilha das Maçãs, um lugar de mistério e encanto, que alberga uma taça sagrada e misteriosa, capaz de curar e dar vida, protegida por uma irmandade de sacerdotisas, que é liderada por Morgana - irmã de Artur, serva da Deusa.

Deste modo, uma paisagem interior foi delineada na tradição arturiana - Logres, o centro místico da Britânia, com os seus castelos reais em Camelot, Caerlon e Carlisle; com as suas densas florestas abrigando nascentes e poços sagrados, protegidos por fadas de beleza transcendental e por onde vagueiam os cavaleiros da Távola Redonda em busca de aventura. E, no centro, Avalon, a ilha mágica, passagem para a terra feérica, para o povo de Sidhe, que continuamente testa os seres humanos e, por vezes, os conduz às profundezas da terra, onde ainda dominam os Velhos Deuses...



Avalon é o lugar onde a eternidade toca a terra, onde qualquer coisa pode acontecer pois é o portal entre os mundos. É uma das "Ilhas Afortunadas"... Malory chama-lhe "o vale de Avilion" e Geoffrey de Monmouth descreve-o em detalhe:

The island of apples... gets its name from the fact that it produces all things of itself; the fields there have no need of the ploughs of the farmers and all cultivation is lacking except what nature provides. Of its own accord it produces grain and grapes, and apple trees grow in the woods from the close-clipped grass. The ground of its own accord produces everything instead of merely grass, and people live there a hundred years or more. There nine sisters rule by a pleasing set of laws those who come to them from our country... Thither after the battle of Camlan we took the wounded Arthur... Morgan received us with fitting honour, and in her chamber she placed the king on a golden bed and with her own hand she uncovered his honourable wound and... at length she said that health could be restored to him if he stayed with her for a long time and made use of her healing art.

Aqui, Avalon é um lugar de cura, um domínio de paz onde a inimizade entre Morgana e Artur é esquecida. Aqui também está Nimue, a Dama do Lago que encantou Merlim e o aprisionou numa caverna. Outro texto - a Gesta Regum Britanniae -  posterior ao de Monmouth, também descreve Avalon como intrinsecamente ligada à dimensão feérica.

This wondrous island is girdled by the ocean; it lacks no good things; no thief, reiver or enemy lurks in ambush there. No snow falls; neither Summer nor Winter rages uncontrollably, but unbroken peace and harmony and the gentle warmth of unbroken Spring. Not a flower is lacking, neither lilies, rose nor violet; the apple-trees bears flowers and fruit together on one bough. Youth and maiden live together in that place without blot or shame. Old age is unknown; there is neither sickness nor suffering - everything is full of joy. No one selfishly keeps anything to himself; here everything is shared.

Noutras culturas isto seria chamado um paraíso terrestre; para os celtas isto era o Outro Mundo, um lugar tão simples e tão real como outro qualquer na dimensão humana. Maravilhamo-nos perante um sítio onde a doença, o sofrimento e a tristeza não têm lugar; onde homens e mulheres vivem em paz e harmonia, e onde a terra fornece generosamente tudo o que é preciso, mas para os celtas é um lugar perfeitamente tangível, situado talvez para lá daquela floresta ou daquele monte...


O REINO MARAVILHOSO

Avalon é como um estádio perfeitamente equilibrado de existência, atingido por vezes na meditação, ou através da prática de certas disciplinas espirituais. É o coração gerador dos mistérios arturianos e o sítio onde todos os que procuram a compreensão desses mesmos mistérios devem chegar. Seja a demanda do Graal ou a do Coração, é em Avalon que os encontramos.

Mas tal só acontecerá se o desejarmos, se o desejo do bem, da cura da terra e dos corações feridos, for suficientemente forte para dissipar a escuridão que oprime o mundo. Os mitos arturianos, com todas as suas figuras arquetípicas, representam este sonho, baseado em histórias de valor, demandas e grandes feitos, e que almeja a união com o cosmos - a Távola Redonda das Estrelas....

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Palácio da Ventura


Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante,
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d' ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d' ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

                                        Antero de Quental

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Ride Si Sapis - O Santo Graal


Monty Python and the Holy Grail - Three Questions

O Santo Graal: Demanda do Absoluto

Galahad, filho de Lancelot e da Princesa do Graal , tem um só destino: encontrar o Castelo do Graal e trazer a cura ao reino do Rei Pescador.

O autor desconhecido da terceira parte do Ciclo da Vulgata, compreendendo a necessidade de um novo elemento que juntasse as diversas histórias num todo coerente, desenvolveu uma personagem, de índole cristã, que redimisse as lendas das suas origens pagãs. Assim surgiu Galahad: sem pecado, sem mácula, de coração puro.

In the Meanwhile came in a good old man, and an
ancient, clothed all in white, and there was no
knight knew from whence he came. And with him he
brought a young knight, both on foot, in red arms,
without sword or shield, save a scabbard hanging by
his side. And these words he said: 'Peace be with
you, fair lords'.
( Thomas Malory, Le Morte D' Arthur, XIII, Ch. 3)

Todos os lugares da Távola Redonda estão ocupados à excepção do Assento Perigoso, que, desde a fundação da Confraria, permanece vazio e encoberto. Ao ser agora descoberto, o nome de Galahad é revelado em letras de ouro. O jovem cavaleiro toma o seu lugar e os mistérios do Graal são desencadeados: os Cavaleiros da Távola Redonda iniciam a Demanda do Santo Graal.


Lancelot chegou ao Castelo do Graal num barco espectral sem comandante nem tripulação, tendo-lhe sido autorizada uma visão distante do Cálice Sagrado, como recompensa pela sua coragem. (Ilustração de Allan Lee, 1984)

Muitos hão-de falhar, incluindo o grandioso Lancelot. Mas Galahad é o seu filho, nascido em circunstâncias extraordinárias. O melhor cavaleiro de Artur e a Princesa do Graal conceberam o cavaleiro perfeito. Legitimamente, Galahad deveria ter sido o filho de Artur e Guinevere, rei e rainha, senhor e senhora. No entanto, Artur concebe Mordred com a sua meia-irmã Morgause e Lancelot é o amante de Guinevere. Desta teia de enganos surge a figura redentora de Galahad a quem é permitido alcançar o mistério do Graal - embora não seja bem sucedido na transformação final do reino num paraíso terreno. Contudo, é-lhe permitido olhar para o Graal e para o que contém fazendo-o expirar num extâse de desejo de união com o Absoluto.


A versão de Malory apresenta uma parada magnífica de personagens: as extraordinárias aventuras dos cavaleiros da Távola Redonda na senda do Santo Graal; os três cavaleiros vitoriosos (Galahad, Percival e Bors) a bordo do navio mágico de Salomão, navegando no tempo, para levar o Graal para Sarras, a Cidade Santa; o fracasso de Lancelot, Gawain e muitos outros; o triste destino da donzela Dindraine, irmã de Percival, que sacrifica s sua vida para salvar uma mulher enferma, e cujo corpo é também levado para Sarras a fim de ser sepultado junto ao de Galahad; o regresso de Percival  ao Castelo do Graal para o mistério continuar e para tornar possível a continuação da Demanda às gerações vindouras; o regresso de Bors à vida mundana trazando palavra dos grandes acontecimentos por si testemunhados.

Frank Dicksee, The End of the Quest

Para os que empreendem hoje a Demanda, fazem-no seguindo o trilho dos cavaleiros de Artur que pavimentaram o caminho e vislumbraram o significado do grande mistério. Neste sentido, eles são muito mais do que meras personagens num ciclo de lendas pois representam arquétipos, as diversas facetas da experiência humana, a aspiração, o fracasso e o derradeiro êxito. Das suas histórias emanam ensinamentos; sabedoria que, se estudada por aqueles que buscam o Graal, nos dias de hoje, poderá revelar o mistério por detrás da tradição arturiana...


Galahad recebe o alimento espiritual do Graal, seguido de Percival e Bors. ("How Sir Galahad, Sir Bors, and Sir Percival Were Fed with the Sanc Grael, but Sir Percival's Sister Died by the Way", de Dante Gabriel Rossetti, 1864)

O Santo Graal é um símbolo universal porque não exige aos que o buscam a pertença a um determinado culto ou credo - apenas que procurem o bem comum, a cura das terras estéreis. Servindo este ideal, somos servidos. Amadurecemos. O Graal envolve-nos na sua luz e uma mudança ocorre em nós. Ao permitirmo-nos fazer parte da sua acção de cura ou redenção, podemos nós próprios praticarmos a sua benção.

É este o grande segredo do Graal - que, afinal, não é segredo nenhum - outro paradoxo na sua natureza infinitamente paradoxal. Simultaneamente em todo e em nenhum lado; procurado por muitos mas encontrado por poucos; várias vezes removido, mas permanecendo sempre; pode curar e pode destruir; é Deus e ainda assim não é Deus. Da sua história não se vislumbra o início, o meio não é seguro e o fim não é certamente discernível.

Labirinto de Chartes

O Graal representa o enigma mais profundo da tradição arturiana. A sua Demanda não tem fim, é eterna. Oferece unidade no meio da fragmentação, unindo numa confraria todos os que caminham pelos trilhos do coração, na sua senda. É um portal entre os mundos e uma ponte para o Divino.

domingo, 15 de agosto de 2010

O Santo Graal: Demanda do Absoluto

SANGREAL

O aspecto mais importante a ser acrescentado à história do Graal foi a sua associação à Eucaristia Cristã. Isto influenciou todas as versões posteriores da lenda. O Graal passou a ser visto como um símbolo do sacrifício de Cristo, tornando-se "no corpo de Nosso Senhor". É este elemento único da Eucaristia, a comunhão com Deus, que torna o Graal diferente de qualquer outro objecto sagrado. O Graal conteve o sangue derramado por Cristo na Cruz.

Permanece, contudo, uma forte influência da magia céltica no mito cristão. Quando o Santo Graal apareceu em Camelot, o cálice perfumou o salão de Artur de doces aromas, de tal modo que os cavaleiros da Távola Redonda comeram e beberam como nunca. Era, na verdade, nada menos que um caldeirão celta da abundância.

O trago que Sir Galahad dele bebeu a convite de José de Arimateia, garantiu-lhe a sobrevivência espiritual. Como um caldeirão celta do renascimento, permitiu a Sir Galahad viver num outro mundo cristão. Esta óbvia inspiração na mitologia celta impediu a igreja de aceitar plenamente o Graal como símbolo cristão. A grande popularidade das histórias do Graal obrigou a uma certa tolerância por parte do clero.

O Ciclo da Vulgata (séc.XIII), compilado por monges cistercienses, aprofundou a mitologia e o simbolismo do Graal, introduzindo personagens, tais como eremitas, que interpretavam os sonhos e visões dos cavaleiros na senda do Graal. Tal foi possível pois os séculos XII e XIII foram uma época de ainda relativa liberdade doutrinal. Em 1200 estamos ainda a trinta anos do estabelecimento da Inquisição e ainda serão precisos mais cinquenta para a Igreja sancionar o uso de tortura contra suspeitos de heresia.

De qualquer modo, cristão ou pagão, o Graal simplesmente é. Símbolo universal, tem uma dimensão de mistério, mas também de sacrifício, de altruísmo e de busca do absoluto, quer lhe chamemos Deus ou Deusa, Centelha Divina, ou um outro qualquer termo abstracto.


Holy Grail, de Edwin Austin Abbey, 1895


Referência Bibliográfica:

MATHEWS, John, The Arthurian Tradition, Element Books Limited, 1994


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