terça-feira, 27 de novembro de 2012

Stella splendens in monte

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O Romance de Amadis: III - Elisena

Anne François Louis Janmot
   Como tudo estivesse sossegado e o ermo silêncio lhes fosse aconselhando ânimo, logo naquela noite Darioleta encaminhou a infanta e, cautelosas, saíram ambas ao pomar. Fazia luar muito claro. Darioleta, olhando Elisena, abriu-lhe o manto, remirou-lhe o corpo, que ela trazia nu, só com camisa, e segredou, rindo baixinho:
   - Em boa hora nasceu aquele que vos vai ter!
Sorriu a infanta e tornou-lhe:
   - Dizei antes que fui bem-aventurada em me dar Deus tal senhor.
   Com passinhos tão aveludados quanto lho ia pedindo o melindre da empresa, foram as duas andando à surda, sob a Lua.
   Entretanto Perion, com a queixa do coração e a esperança que Darioleta nele lhe fora plantar, não pudera adormecer. Caíra agora em modorra, e sonhava; padecia aflito os tratos que lhe estavam dando, pois é maravilha representar-nos a mente tão vivo o que só nela própria se engendra. Sonhava que alguém entrara por uma porta falsa naquela câmara, sem que se pudesse defender do inimigo chegado à sua beira.
   E o inimigo fora-se a ele,  abria-lhe as costas com as unhas e tanto remexera que lhe agarrara o coração.
   - Porque me fazeis tal crueza? - gemia Perion a labutar nas vascas do pesadelo.
   Afogado em dor, vira el-rei o seu próprio coração levado à janela, donde fora atirado às águas de um rio.
   Enquanto el-rei Perion pelejava no sonho, a infanta e a sua guia vinham chegando à porta da câmara. Elisena tremia toda. Ao tocarem na aldraba, o ferro tiniu. Perion acordou espavorido e benzeu-se.
   Neste ponto iam entrar as donzelas e, como ele sentisse rumor, temeu-se de traição e saltou do leito, empunhando a espada contra os vultos.
   - Senhor, isso que é? - segredou-lhe Darioleta.
   Reconhecendo então Elisena, foi tomá-la Perion nos braços. Darioleta disse à infanta:
   - Ficai, senhora, que se vos defendestes de muitos, e ele de muitas também se defendeu, mandou Deus que vos não defendêsseis um do outro.
   E, vendo a espada de e-rei, tomou-a a donzela em sinal do juramento que ele fizera, e saiu.
   Perion, olhando Elisena à luz das tochas que ardiam, parecia-lhe que nela se ajuntavam todas as formosuras do mundo.

Edmund Dulac
   Antes de a alva romper, veio Darioleta pela infanta e, indo as duas dormir, nada se soube em palácio.
   Assim em dez noites seguidas  se amaram Perion e Elisena, e em cada uma guiava Darioleta a infanta até à câmara onde os desígnios do Senhor se cumpriam.
   Por isso o Senhor juntara os dois, mudando para tal fim a um e a outro: a ele, tirando-lhe a liberdade com que correra aventuras, fazendo-lhe a ela baixar os formosos olhos à terra. Em uma noite, perguntou Elisena ao que já tinha por esposo:
   - E quando vos fordes, que há-de ser de mim?
   Respondeu-lhe Perion, sentindo já também a dor da ausência:
   - Quando eu me for deixo-vos o coração, e ele nos dará forças, a vós para esperar um tempo, a mim para cedo tornar.

Frank Dicksee, La Belle Dame sans Merci, 1900
   Ao cabo daqueles dias el-rei Perion acordou e obrigou sua vontade, decidindo-se à partida. Bem se pode dizer que acordara, porque o verdadeiro amor, ao encher coração de homem, de tal sorte o eleva e apura que o livra do peso do mundo. Além da pena principal que lhe fazia o apartar-se de Elisena, sentia el-rei outro grande cuidado, e este lho estava dando o sonho que tivera naquela primeira noite do seu amor. Queria saber como os sábios do seu reino entenderiam aquilo do coração deitado ao rio, pois desde que tal coisa sonhara não pudera recobrar o ânimo seguro. Tinha o sonho por aviso misterioso ou temerosa profecia.
   Despediu-se de el-rei Garinter com palavras de muita cortesia, e ouviu outras de grande estimação. Mas,  quando quis cingir a espada, não a achou. Acanhou-se de a procurar e não se atreveu a pedi-la, o que muito lhe custava, porque a espada era boa e formosa.
   E partiu daquele reino.
   Porém antes falara com Darioleta, com quem desabafou a pena em que ia e lhe contou aquela em que sua senhora ficava.
   - Senhor, a minha senhora não pode viver sem vós!
   - Pois eu vo-la recomendo como se fosse a minha alma!
   E, tirando do dedo um formoso anel, de dois iguais que trazia, deu-lho para que lho levasse por seu amor.

O Romance de Amadis, reconstituído por Afonso Lopes Vieira
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