quinta-feira, 21 de junho de 2012

O Romance de Amadis: I - Perion

   
Senhores, ouvide o Romance de Amadis, o Namorado. Escreveu-o um velho trovador português, mas depois um castelhano, trocando-lhe a língua e o jeito, da nossa terra o levou. Porém as mais nobres mentes de Espanha já por nosso o dão.
   Em Portugal tem a segunda pátria o espírito heróico e amoroso da Távola Redonda.
   E o conto é o do amor mais fino e fiel, de português amor, rendido como ele é só.
   Ao começar o Romance, invoco a memória do cavaleiro-poeta que o compôs, para que me alumie. Invoco a alma de Portugal que aprendeu com Amadis a ser gentil e forte e a prezar a flor da Honra.
   E vós que amais com amor heróico e fiel, que amais o amor, ouvide a história como eu a senti.

   Não muitos anos depois da Paixão do nosso Salvador e Redentor Jesus Cristo, houve na Piquena Bretanha um rei, por nome Garinter, piedoso cristão e senhor de lhanas maneiras.
   Teve este rei duas filhas de sua mulher, boa dona. A mais velha casou com Languines, rei de Escócia; e a essa se chamou a Dona da Guirlanda, porque de uma grinalda mui rica quis seu marido que ela sempre toucasse os formosos cabelos, tanto gosto lhe dava olhá-los; e por filhos houveram Agrajes e Mabília, de quem adiante se fará menção.
   Porém, a outra filha, chamada Elisena, era muito mais linda que a irmã, e tão virtuosa que parecia ser Deus o único senhor capaz de estimar tal criatura. Haviam já pedido a sua mão muitos príncipes dignos de a esposar, os quais demandavam a corte da Piquena Bretanha sabedores da formosura e virtudes que nela resplandeciam.
   Mas todos se tinham ido sem ser aceites por noivos.
   - Filha - dizia-lhe el-rei Garinter, a quem custava esta isenção da infanta -, estou já de muitos dias; quisera eu, antes de dar contas a Deus, deixar-te segura nas voltas do mundo.
   Mas como Elisena só aos gozos da religião se inclinava, sem mostrar outro fito que o do Céu, tanta esquivança deu azo a que a apelidassem a Devota perdida.
   Ora, este rei Garinter, quando o tempo ia brando, saía algumas vezes a montear, para espalhar cuidados. Uma vez que se apartara dos monteiros e pela espessura andava a rezar as suas Horas, viu um cavaleiro desconhecido que com dois outros pelejava, e nestes reconheceu dois vassalos, de quem, por soberbos e descorteses, el-rei andava queixoso. Mui bravo era o que acometia sozinho os dois juntos, pois com tão natural galhardia se guardava e investia com eles, que da sua parte mais parecia desenfado que peleja, seguro como se achava de si o cavaleiro desconhecido.
   El-rei Garinter, que se arredara, olhava o combate desigual, e achara que Deus fora justo quando caíram mortos por terra os maus vassalos.
   Isto feito, veio o cavaleiro a el-rei e, vendo-o só, perguntou-lhe:
   - Amigo, que terra é esta em que os cavaleiros são salteados?
   - Não vos faça isso espanto - retrucou el-rei - que em todas as terras há bons e maus cavaleiros; e desses que dizeis muitos tinham agravos, e até seu mesmo rei.
   - A esse rei quero falar - tornou o cavaleiro - e se sabeis onde pára, dizei-mo por favor.
   Não quis el-rei Garinter alongar por mais tempo o engano, e respondeu:
   - Pois sabei que o rei da Piquena Bretanha, eu o sou.
   Ouvindo esta resposta, entregou o cavaleiro ao escudeiro o escudo e o elmo, e foi abraçar el-rei Garinter, dizendo-lhe que era el-rei Perion de Gaula e que muito quisera conhecê-lo. Ao som deste nome deveras folgou o senhor bretão. Conhecia ele Perion por sua fama alta e honrada, pela bravura e gentileza da sua cavalaria, as quais, sendo aquele rei moço como era, tão celebradas andavam por todos os reinos da Piquena e da Grã Bretanha. E, do coração, deu-lhe as boas-vindas, convidando-o com honra para hóspede. Alegres se juntaram os dois senhores e dispuseram-se a procurar os monteiros para se recolherem à vila de Alima, donde el-rei Garinter partira para montear.
   Prosseguiam os dois, discorrendo em cousas aprazíveis; e el-rei Garinter ouvia com gosto quanto lhe ia dizendo o senhor de Gaula, em cujas palavras a cortesia emparelhava com o nobre juízo.
   - Tão moço é ainda - pensava o da Piquena Bretanha - e assim na bravura é ousado como na mente esclarecido. Ditoso o pai que a este houver de dar filha!
   Súbito, pelo caminho saltou-lhes um veado escapo da montaria e atrás do qual correram os reis, a fim de o lancear. Já quase o tinham debaixo dos ferros quando um leão, que rompera das brenhas, alcançou o veado, atassalhou-o, e pôs-se a olhar sanhudo os caçadores, como quem preara bocado que julgava ninguém disputaria.
   Vendo isto, desmontou el-rei Perion do cavalo, que a vista do leão espantara:
   - Pois não há-de ser teu! - bradou Perion.
   Sem que o estorvassem as vozes de el-rei Garinter, com as quais lhe pedia não desse batalha a tão bruto inimigo, Perion endireitou à fera, com escudo embraçado e a espada na mão. Logo o leão deixou a presa e, furioso de ver que o contestavam, arremessou-se contra quem lhe negava os direitos de tomador. Juntando-se ambos, o leão o teve debaixo, prestes a esquartejá-lo. Já el-rei Garinter lastimava que a mocidade do senhor de Gaula o fizesse por gosto ser pasto de feras. Mas pouco durou o temor que o esfriava, porque el-rei Perion, não perdendo o ânimo no apuro, ensopou a espada no ventre do leão e matou-o.
   Perto soaram as buzinas dos monteiros, que logo vieram e rodearam a seu senhor.
   E do que viu se admirou el-rei Garinter, entre si dizendo que não sem causa el-rei Perion era tido pelo mais esforçado cavaleiro do mundo.

O Romance de Amadis, reconstituído por Afonso Lopes Vieira

(continua)
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