quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Jus a lo Mar e lo Rio


Concepção: Pedro Caldeira Cabral
Arranjo: Jorge Varrecoso Gonçalves e Vasco Azevedo

Uma cantiga de amigo (marinha), da autoria de João Zorro, o jogral de Lisboa e do Tejo (viveu certamente durante o reinado de D. Dinis): fala a donzela (namorada) da sua decisão ou desejo de ir ver o barco que o rei mandou preparar para uma missão e nela deseja partir com o seu amigo. 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Stella splendens in monte

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O Romance de Amadis: III - Elisena

Anne François Louis Janmot
   Como tudo estivesse sossegado e o ermo silêncio lhes fosse aconselhando ânimo, logo naquela noite Darioleta encaminhou a infanta e, cautelosas, saíram ambas ao pomar. Fazia luar muito claro. Darioleta, olhando Elisena, abriu-lhe o manto, remirou-lhe o corpo, que ela trazia nu, só com camisa, e segredou, rindo baixinho:
   - Em boa hora nasceu aquele que vos vai ter!
Sorriu a infanta e tornou-lhe:
   - Dizei antes que fui bem-aventurada em me dar Deus tal senhor.
   Com passinhos tão aveludados quanto lho ia pedindo o melindre da empresa, foram as duas andando à surda, sob a Lua.
   Entretanto Perion, com a queixa do coração e a esperança que Darioleta nele lhe fora plantar, não pudera adormecer. Caíra agora em modorra, e sonhava; padecia aflito os tratos que lhe estavam dando, pois é maravilha representar-nos a mente tão vivo o que só nela própria se engendra. Sonhava que alguém entrara por uma porta falsa naquela câmara, sem que se pudesse defender do inimigo chegado à sua beira.
   E o inimigo fora-se a ele,  abria-lhe as costas com as unhas e tanto remexera que lhe agarrara o coração.
   - Porque me fazeis tal crueza? - gemia Perion a labutar nas vascas do pesadelo.
   Afogado em dor, vira el-rei o seu próprio coração levado à janela, donde fora atirado às águas de um rio.
   Enquanto el-rei Perion pelejava no sonho, a infanta e a sua guia vinham chegando à porta da câmara. Elisena tremia toda. Ao tocarem na aldraba, o ferro tiniu. Perion acordou espavorido e benzeu-se.
   Neste ponto iam entrar as donzelas e, como ele sentisse rumor, temeu-se de traição e saltou do leito, empunhando a espada contra os vultos.
   - Senhor, isso que é? - segredou-lhe Darioleta.
   Reconhecendo então Elisena, foi tomá-la Perion nos braços. Darioleta disse à infanta:
   - Ficai, senhora, que se vos defendestes de muitos, e ele de muitas também se defendeu, mandou Deus que vos não defendêsseis um do outro.
   E, vendo a espada de e-rei, tomou-a a donzela em sinal do juramento que ele fizera, e saiu.
   Perion, olhando Elisena à luz das tochas que ardiam, parecia-lhe que nela se ajuntavam todas as formosuras do mundo.

Edmund Dulac
   Antes de a alva romper, veio Darioleta pela infanta e, indo as duas dormir, nada se soube em palácio.
   Assim em dez noites seguidas  se amaram Perion e Elisena, e em cada uma guiava Darioleta a infanta até à câmara onde os desígnios do Senhor se cumpriam.
   Por isso o Senhor juntara os dois, mudando para tal fim a um e a outro: a ele, tirando-lhe a liberdade com que correra aventuras, fazendo-lhe a ela baixar os formosos olhos à terra. Em uma noite, perguntou Elisena ao que já tinha por esposo:
   - E quando vos fordes, que há-de ser de mim?
   Respondeu-lhe Perion, sentindo já também a dor da ausência:
   - Quando eu me for deixo-vos o coração, e ele nos dará forças, a vós para esperar um tempo, a mim para cedo tornar.

Frank Dicksee, La Belle Dame sans Merci, 1900
   Ao cabo daqueles dias el-rei Perion acordou e obrigou sua vontade, decidindo-se à partida. Bem se pode dizer que acordara, porque o verdadeiro amor, ao encher coração de homem, de tal sorte o eleva e apura que o livra do peso do mundo. Além da pena principal que lhe fazia o apartar-se de Elisena, sentia el-rei outro grande cuidado, e este lho estava dando o sonho que tivera naquela primeira noite do seu amor. Queria saber como os sábios do seu reino entenderiam aquilo do coração deitado ao rio, pois desde que tal coisa sonhara não pudera recobrar o ânimo seguro. Tinha o sonho por aviso misterioso ou temerosa profecia.
   Despediu-se de el-rei Garinter com palavras de muita cortesia, e ouviu outras de grande estimação. Mas,  quando quis cingir a espada, não a achou. Acanhou-se de a procurar e não se atreveu a pedi-la, o que muito lhe custava, porque a espada era boa e formosa.
   E partiu daquele reino.
   Porém antes falara com Darioleta, com quem desabafou a pena em que ia e lhe contou aquela em que sua senhora ficava.
   - Senhor, a minha senhora não pode viver sem vós!
   - Pois eu vo-la recomendo como se fosse a minha alma!
   E, tirando do dedo um formoso anel, de dois iguais que trazia, deu-lho para que lho levasse por seu amor.

O Romance de Amadis, reconstituído por Afonso Lopes Vieira

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Mercy Street

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Canção da Minha Ternura

Alphonse Osbert, La Muse au Lever du Soleil, 1918

Rondaste o meu castelo solitário
como um rio de vozes e de gestos;
baixei as minhas pontes fatigadas
e conheci teus lumes, teus agrados
teus olhos de ouro negro que confundem;
andei na tua voz como num rio
de fogo e mel e raros peixes belos,
cheguei na tua ilha e atrás da porta
me deste o banquete dos ardores
teus.

Mas às vezes sou quem volta
a erguer as pontes e cavar o fosso
e agora em sua torre, ternamente,
sem mágoa se debruça nas varandas
vendo-te ao longe , barco nessas águas,
querendo ainda estar se regressares
-porque seria pena naufragarmos
se poderias ter, sem tantas dores,
viagens e chegadas nos amores
meus.

Lya Luft

sábado, 29 de setembro de 2012

A Jornada de Maelduin - IV - A Ilha dos Cavaleiros Invisíveis

"Na tradição celta, o Outro Mundo (ou o Além) é um lugar de realidade superior, onde vivem os deuses e a plenitude do potencial individual é revelada. Não é um lugar de fantasmas e horrores, como na tradição clássica cristã. Em vez disso, encontramos ilhas repletas de salmões, salões de festas e pilares de prata que se erguem do mar. Há muitos desafios na forma de grandes animais, incríveis gigantes, ilhas de riso e lágrimas incessantes, mas cada um tem uma lição a ensinar."
(...)
"A jornada de Maelduin leva-o do mundo onde os homens e os seus feitos de armas predominam para o Outro Mundo, no qual vivem mulheres e maravilhas. O seu immram (jornada mística) torna-se uma profunda iniciação, permitindo-lhe tornar-se um adulto maduro. O que começa como uma viagem para a vingança contra os assassinos do seu pai, torna-se numa jornada educativa e numa exploração do Outro Mundo, conduzida pelo seu pai, ausente, do outro lado, o da morte."

IV - Ilha dos Cavaleiros Invisíveis

Germano foi sorteado para explorar a próxima ilha, mas Diurán acompanhou-o. Encontraram na areia enormes marcas de cascos de cavalos, cada uma do tamanho de uma vela, e os restos de um grande banquete. Temerosos pelo tamanho do que viam, os dois homens retornaram rapidamente ao barco, de onde podiam ver uma corrida de cavalos e ouvir os sons de cavaleiros gritando para as suas montadas. Mas os cavaleiros não eram vistos.

A tripulação recebe a primeira indicação de que não é a única espécie inteligente neste reino. Ninguém tem ainda a sensibilidade para ver os seres do Outro Mundo, embora já ouçam vozes. Isto corresponde ao modo como os viajantes começam a compreender a extensão e organização do Outro Mundo, uma experiência probatória.

Caitlin Matthews, O Livro Celta dos Mortos



quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A Jornada de Maelduin - III - A Ilha do Cavalo com Patas de Cão

"Na tradição celta, o Outro Mundo (ou o Além) é um lugar de realidade superior, onde vivem os deuses e a plenitude do potencial individual é revelada. Não é um lugar de fantasmas e horrores, como na tradição clássica cristã. Em vez disso, encontramos ilhas repletas de salmões, salões de festas e pilares de prata que se erguem do mar. Há muitos desafios na forma de grandes animais, incríveis gigantes, ilhas de riso e lágrimas incessantes, mas cada um tem uma lição a ensinar."
(...)
"A jornada de Maelduin leva-o do mundo onde os homens e os seus feitos de armas predominam para o Outro Mundo, no qual vivem mulheres e maravilhas. O seu immram (jornada mística) torna-se uma profunda iniciação, permitindo-lhe tornar-se um adulto maduro. O que começa como uma viagem para a vingança contra os assassinos do seu pai, torna-se numa jornada educativa e numa exploração do Outro Mundo, conduzida pelo seu pai, ausente, do outro lado, o da morte."

III - A Ilha do Cavalo com Patas de Cão

A próxima ilha que encontram tinha um cavalo com patas de cão. Com a ansiedade própria do cachorro, o animal saltou sobre eles para comê-los. Quando os viu a fugir, a estranha criatura começou a escavar terra e pedras para os atingir.

O cavalo era um nobre animal de reverência na tradição celta. A combinação da ansiedade de um cão, da velocidade de um cavalo e da destreza de um humano é assustadora. Este é um dos muitos encontros nos quais os homens são uma parte importante da cadeia alimentar: uma experiência salutar para quem está acostumado a ser o agressor. As primeiras explorações da jornada interior são geralmente confusas, parecidas com os sonhos que sucedem a um dia agitado.

in O Livro Celta dos Mortos - A Jornada de Maelduin, de Caitlín Matthews 


sábado, 11 de agosto de 2012

A Jornada de Maelduin - II - A Ilha dos Muitos Pássaros

"Na tradição celta, o Outro Mundo (ou o Além) é um lugar de realidade superior, onde vivem os deuses e a plenitude do potencial individual é revelada. Não é um lugar de fantasmas e horrores, como na tradição clássica cristã. Em vez disso, encontramos ilhas repletas de salmões, salões de festas e pilares de prata que se erguem do mar. Há muitos desafios na forma de grandes animais, incríveis gigantes, ilhas de riso e lágrimas incessantes, mas cada um tem uma lição a ensinar."
(...)
"A jornada de Maelduin leva-o do mundo onde os homens e os seus feitos de armas predominam para o Outro Mundo, no qual vivem mulheres e maravilhas. O seu immram (jornada mística) torna-se uma profunda iniciação, permitindo-lhe tornar-se um adulto maduro. O que começa como uma viagem para a vingança contra os assassinos do seu pai, torna-se numa jornada educativa e numa exploração do Outro Mundo, conduzida pelo seu pai, ausente, do outro lado, o da morte."

II - Ilha dos Muitos Pássaros

A uma ilha eles prosseguiram viagem, e lá encontraram gentis pássaros, abundantemente pousados aos milhares. Carregaram o barco com eles, suave foi a sua passagem; agradável a ilha após a jornada, uma curta estada maravilhosa.





Os homens começam a procurar comida, que, às vezes, se torna uma urgência premente. O Outro Mundo oferece uma abundância de coisas boas, embora haja frequentemente condições que devem ser observadas para que eles não transgridam os limites da hospitalidade. Os pássaros são animais de fala sobrenatural, geralmente mensageiros. Aqui eles proporcionam a Maelduin o meio de sobreviver num ambiente estranho. É importante alimentar-se correctamente para que os homens se sintonizem com o Outro Mundo e recebam os seus benefícios.

in O Livro Celta dos Mortos - A Jornada de Maelduin, de Caitlín Matthews 

domingo, 5 de agosto de 2012

A Jornada de Maelduin - I - A Ilha das Formigas Gigantes

"Na tradição celta, o Outro Mundo (ou o Além) é um lugar de realidade superior, onde vivem os deuses e a plenitude do potencial individual é revelada. Não é um lugar de fantasmas e horrores, como na tradição clássica cristã. Em vez disso, encontramos ilhas repletas de salmões, salões de festas e pilares de prata que se erguem do mar. Há muitos desafios na forma de grandes animais, incríveis gigantes, ilhas de riso e lágrimas incessantes, mas cada um tem uma lição a ensinar."
(...)
"A jornada de Maelduin leva-o do mundo onde os homens e os seus feitos de armas predominam para o Outro Mundo, no qual vivem mulheres e maravilhas. O seu immram (jornada mística) torna-se uma profunda iniciação, permitindo-lhe tornar-se um adulto maduro. O que começa como uma viagem para a vingança contra os assassinos do seu pai, torna-se numa jornada educativa e numa exploração do Outro Mundo, conduzida pelo seu pai, ausente, do outro lado, o da morte."

I - A Ilha das Formigas Gigantes

Viajaram três dias e três noites até ouvirem o quebrar das ondas sobre a terra. Virando para nordeste, encontraram uma ilha onde viviam enxames de formigas gigantes, do tamanho de potros, que tentaram devorar a tripulação e o barco. Mas os homens fugiram.



O início da viagem oferece um período de reflexão quando os homens estão sozinhos com os elementos. Os seus temores são representados pelas formigas gigantes, o primeiro de muitos encontros com animais e seres gigantescos. Esta característica do tamanho astronómico é comum em viagens xamanísticas ao Outro Mundo.(veja-se o exemplo de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll). A experiência inicial do viajante interior geralmente é de medo e expectativa. Viajar para o Outro Mundo costuma trazer à tona ansiedades latentes e dúvidas de si mesmo, principalmente diante do desconhecido. Uma maior experiência gera confiança, mas a solidão é o obstáculo inicial que traz a pergunta: "Quem sou eu, na realidade?"

in O Livro Celta dos Mortos - A Jornada de Maelduin, de Caitlín Matthews

terça-feira, 31 de julho de 2012

Lux Feminae

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O Romance de Amadis: II - Darioleta

Paul Delaroche, L' Art Gothique ou le Moyen Âge

Carregados que foram em dois palafréns o leão e o veado, para a vila se encaminharam com grande prazer os senhores; do que sendo avisada a rainha, de mui ricos atavios se enfeitaram os paços e foram postas as mesas. Quando se juntaram para comer, sentaram-se a uma mais alta os dois reis e a rainha, com a infanta Elisena em outra a par desta; e ali foram servidos como em casa de tão bom senhor convinha.

Pois, senhores, sendo a infanta tão virtuosa e Perion tão alto cavaleiro, em tal hora se olharam que o grande recato dela não pôde tanto que não fosse presa de amor; e Perion assim também da infanta, pois seu próprio coração o havia livre. De maneira que, um e outro, todo o tempo estiveram como se as almas que até ali tinham tido lhes tivessem saído dos corpos e outras houvessem entrado que eles próprios não conhecessem. Recolhendo-se a rainha à sua câmara, levantou-se Elisena e, caindo-lhe do regaço um anel que tirara para se lavar, a fim de o apanhar se baixou, quando Perion o tomou e lho deu.

No dar e receber anel, as mãos deles encontraram-se e Perion apertou a da infanta, que, olhando-o com amorosos olhos, lhe agradeceu, corando.
Perion disse-lhe baixinho:
- Não será este o último serviço, pois toda a vida a quero empregar em vos servir!
Tão turbada se foi Elisena que a vista quase perdia. É que o efeito do amor, em alma que fora tão isenta, ia lavrando com dobrado lume.

Não podendo calar dor tão nova, descobriu o seu segredo a uma donzela da corte de quem muito se fiava e se chamava Darioleta. E, com lágrimas nos olhos e ânsia no coração, pediu-lhe conselho sobre como poderia saber se Perion amava outra mulher e se aquele amoroso rosto, com que a estivera olhando, seria prova de amor igual ao seu. Pasmou Darioleta com tal mudança em pessoa para quem estas coisas eram tão desusadas. Teve por caso peregrino que assim, de súbito, quisesse saborear o humano quem até ali desdenhara quanto não fosse divino. Porém logo prometeu servi-la, vendo que o amor não deixara em sua senhora cantinho onde coubessem razão ou conselho.

Determinando-se, pois a ajudar sem detença a nova enamorada, encaminhou-se Darioleta para a câmara d'el-rei Perion, a tempo que o escudeiro de el-rei ia levar os vestidos do seu senhor. Pediu-lhos a donzela, dizendo que ela mesma os levaria.
Tomando por maior honra o que a seu senhor se fazia, deu-lhos o escudeiro; e Darioleta, entrando na câmara de Perion, por este foi reconhecida como a donzela da infanta:
- Boa donzela, que me quereis?
- Senhor, dar-vos de vestir.
- Nu de alegria está meu coração!
- Porquê, senhor?
- Porque sempre livre fui, a este reino livre vim, e agora recebi ferida mortal. Se me achásseis remédio, eu vos daria bom galardão.

Respondeu Darioleta que muito a contentava servir tão bom senhor, se soubesse em quê. Ora, Darioleta sabia muito bem aquilo em que poderia servir el-rei Perion. Mas alegrava-se de o ouvir falar do amor que Elisena lhe merecia, comparava as palavras dele com as que lhe ouvira a ela, e tudo ia encaminhando ao ponto que desejava.
Respondeu-lhe el-rei:
- Se me prometeis guardar segredo do que vos eu disser, descobrindo-o só onde de razão, então direi.
E, prometendo-lho Darioleta, disse-lhe Perion que vivera até ali sem haver empregado o coração; que andava costumado a correr aventuras, mas não a penar cuidados; que em forte hora olhara Elisena, pois tão cuidoso estava que se julgava a ponto de morrer, e enfim que morria se não achasse algum remédio.

- Eu vos digo que nunca pensei que o amor fosse assim! - acabou Perion por confessar. - Mas, pelo que estou sentindo, sei agora como ele é.
Tornou-lhe a donzela:
- Senhor, se me prometerdes como cavaleiro, guardando em tudo  a verdade a que mais obrigado sois como rei, de, a seu tempo, a receber por mulher, então eu farei coisa que não só o coração vos contente, mas também contente o dela, onde mora amor igual. Porém, se o não prometerdes, minha senhora não alcançareis, nem vossas palavras tomarei como de honrado amor.
El-rei Perion, que obedecia também ao mando de Deus para que tudo sucedesse como adiante ouvireis, pôs a mão na cruz da sua espada, e jurou:
- Juro nesta cruz e espada, com que a Cavalaria recebi, de fazer quanto por minha senhora Elisena requerido for.

Alegrou-se Darioleta e despediu-se:
- Pois folgai ora, que eu farei o que vos disse!
Buscando a infanta, contou-lhe quanto se passara com el-rei Perion, e repetiu-lhe as palavras de tão seguro amor que tinha ouvido ao novo enamorado.
Elisena abraçou-a, tomada de uma alegria como não sentira nunca:
- Oh! Minha amiga verdadeira! Mas quando soará a hora em que em meus braços aperte a quem por senhor me foi dado?

Explicou-lhe Darioleta que, dando a câmara de el-rei Garinter para o pomar, a ela iriam seguras quando todos à noite estivessem a dormir. E lembrando-lhe Elisena que na mesma câmara ficava el-rei seu pai, a donzela prometeu que tudo havia de fazer bem.
Quando caiu a noite, Darioleta apartou-se com o escudeiro de el-rei Perion e perguntou-lhe:
- Ora dizei-me lá: quem é a mulher a quem vosso senhor ama com entranhado amor?
- O meu senhor - respondeu, rindo, o escudeiro - ama a todas, mas a nenhuma, afinal!
Ficou a donzela contente de receber resposta que tão bem acertava com o que a tal respeito lhe dissera o próprio Perion.

Neste ponto acercou-se el-rei Garinter e, vendo os dois conversando, perguntou à donzela que tinha ela que dizer àquele escudeiro.
- Por Deus, senhor, ele é que me chamou e disse que seu senhor costuma dormir sozinho em uma câmara, e vossa companhia certo o estorvará.
El-rei Garinter, muito honrado com o hóspede e querendo que ele se achasse bem, logo foi dizer a el-rei Perion que, levantando-se a Matinas, por ter muito em que lidar, o deixaria só para lhe não fazer estorvo.
Quando Darioleta viu que os reposteiros levavam de ali a cama de el-rei Garinter, foi contar à infanta quanto sucedia.

- Senhora - disse-lhe a donzela - fiz quanto vos prometi, mas temo que um dia julgueis que ajudei ao erro.
- Boa amiga - respondeu Elisena -, creio que Deus assim o quer! O que parece agora erro, será ao depois grande serviço seu.
E deste modo estiveram elas até que todos foram dormir.

O Romance de Amadis, reconstituído por Afonso Lopes Vieira

(continua)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O Encoberto

Cavaleiro do Sonho e do Desejo,
guarda no santo Graal,
com a nossa Saudade e o nosso Beijo,
- o sangue de Portugal.

Sonho de além e de glória,
há tanto, há tanto
o sonha um Povo inteiro!
Maravilha e encanto
da nossa história:
- oh Manhã de Nevoeiro...

Oh manhã misteriosa
que alvoreces em nós teu rompante claror,
teu messiânico alvor,
manhã de além, alva saudosa,
- tu és nossa força que não passa,
teu sonho em nós revive ao longe e ao perto,
manhã sem dia, oh manhã de Graça,
em que há de vir o Encoberto...

Místico Paladino iluminado,
que ao areal arrastou nossa alma em flor
e jogou a sorrir nosso destino e sorte,
ele era vivo antes de Desejado,
ele era vivo em nosso sonho e amor,
- e nunca o levou a morte!

Ele é vivo e é eterno! Horas ansiadas
em que o sinto, no meu sangue, em mim...
Ele vive nas Ilhas Encantadas
da nossa alma sem fim...

E, oh maravilha!
em toda a hora do perigo e do temor,
o Encoberto volta da sua Ilha,
e salva-nos, e salva-nos, Senhor!...

E a Esperança imortal,
surda palpita na manhã rompente!
Cerra-se a névoa alucinadamente,
Portugal bóia no nevoeiro...

E o Cavaleiro
do Sonho e do Desejo
guarda no Santo Graal,
com a nossa Saudade e o nosso Beijo,
- o sangue de Portugal.

In Ilhas de Bruma, Afonso Lopes Vieira
Edmund Dulac

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O Romance de Amadis: I - Perion

   
Senhores, ouvide o Romance de Amadis, o Namorado. Escreveu-o um velho trovador português, mas depois um castelhano, trocando-lhe a língua e o jeito, da nossa terra o levou. Porém as mais nobres mentes de Espanha já por nosso o dão.
   Em Portugal tem a segunda pátria o espírito heróico e amoroso da Távola Redonda.
   E o conto é o do amor mais fino e fiel, de português amor, rendido como ele é só.
   Ao começar o Romance, invoco a memória do cavaleiro-poeta que o compôs, para que me alumie. Invoco a alma de Portugal que aprendeu com Amadis a ser gentil e forte e a prezar a flor da Honra.
   E vós que amais com amor heróico e fiel, que amais o amor, ouvide a história como eu a senti.

   Não muitos anos depois da Paixão do nosso Salvador e Redentor Jesus Cristo, houve na Piquena Bretanha um rei, por nome Garinter, piedoso cristão e senhor de lhanas maneiras.
   Teve este rei duas filhas de sua mulher, boa dona. A mais velha casou com Languines, rei de Escócia; e a essa se chamou a Dona da Guirlanda, porque de uma grinalda mui rica quis seu marido que ela sempre toucasse os formosos cabelos, tanto gosto lhe dava olhá-los; e por filhos houveram Agrajes e Mabília, de quem adiante se fará menção.
   Porém, a outra filha, chamada Elisena, era muito mais linda que a irmã, e tão virtuosa que parecia ser Deus o único senhor capaz de estimar tal criatura. Haviam já pedido a sua mão muitos príncipes dignos de a esposar, os quais demandavam a corte da Piquena Bretanha sabedores da formosura e virtudes que nela resplandeciam.
   Mas todos se tinham ido sem ser aceites por noivos.
   - Filha - dizia-lhe el-rei Garinter, a quem custava esta isenção da infanta -, estou já de muitos dias; quisera eu, antes de dar contas a Deus, deixar-te segura nas voltas do mundo.
   Mas como Elisena só aos gozos da religião se inclinava, sem mostrar outro fito que o do Céu, tanta esquivança deu azo a que a apelidassem a Devota perdida.
   Ora, este rei Garinter, quando o tempo ia brando, saía algumas vezes a montear, para espalhar cuidados. Uma vez que se apartara dos monteiros e pela espessura andava a rezar as suas Horas, viu um cavaleiro desconhecido que com dois outros pelejava, e nestes reconheceu dois vassalos, de quem, por soberbos e descorteses, el-rei andava queixoso. Mui bravo era o que acometia sozinho os dois juntos, pois com tão natural galhardia se guardava e investia com eles, que da sua parte mais parecia desenfado que peleja, seguro como se achava de si o cavaleiro desconhecido.
   El-rei Garinter, que se arredara, olhava o combate desigual, e achara que Deus fora justo quando caíram mortos por terra os maus vassalos.
   Isto feito, veio o cavaleiro a el-rei e, vendo-o só, perguntou-lhe:
   - Amigo, que terra é esta em que os cavaleiros são salteados?
   - Não vos faça isso espanto - retrucou el-rei - que em todas as terras há bons e maus cavaleiros; e desses que dizeis muitos tinham agravos, e até seu mesmo rei.
   - A esse rei quero falar - tornou o cavaleiro - e se sabeis onde pára, dizei-mo por favor.
   Não quis el-rei Garinter alongar por mais tempo o engano, e respondeu:
   - Pois sabei que o rei da Piquena Bretanha, eu o sou.
   Ouvindo esta resposta, entregou o cavaleiro ao escudeiro o escudo e o elmo, e foi abraçar el-rei Garinter, dizendo-lhe que era el-rei Perion de Gaula e que muito quisera conhecê-lo. Ao som deste nome deveras folgou o senhor bretão. Conhecia ele Perion por sua fama alta e honrada, pela bravura e gentileza da sua cavalaria, as quais, sendo aquele rei moço como era, tão celebradas andavam por todos os reinos da Piquena e da Grã Bretanha. E, do coração, deu-lhe as boas-vindas, convidando-o com honra para hóspede. Alegres se juntaram os dois senhores e dispuseram-se a procurar os monteiros para se recolherem à vila de Alima, donde el-rei Garinter partira para montear.
   Prosseguiam os dois, discorrendo em cousas aprazíveis; e el-rei Garinter ouvia com gosto quanto lhe ia dizendo o senhor de Gaula, em cujas palavras a cortesia emparelhava com o nobre juízo.
   - Tão moço é ainda - pensava o da Piquena Bretanha - e assim na bravura é ousado como na mente esclarecido. Ditoso o pai que a este houver de dar filha!
   Súbito, pelo caminho saltou-lhes um veado escapo da montaria e atrás do qual correram os reis, a fim de o lancear. Já quase o tinham debaixo dos ferros quando um leão, que rompera das brenhas, alcançou o veado, atassalhou-o, e pôs-se a olhar sanhudo os caçadores, como quem preara bocado que julgava ninguém disputaria.
   Vendo isto, desmontou el-rei Perion do cavalo, que a vista do leão espantara:
   - Pois não há-de ser teu! - bradou Perion.
   Sem que o estorvassem as vozes de el-rei Garinter, com as quais lhe pedia não desse batalha a tão bruto inimigo, Perion endireitou à fera, com escudo embraçado e a espada na mão. Logo o leão deixou a presa e, furioso de ver que o contestavam, arremessou-se contra quem lhe negava os direitos de tomador. Juntando-se ambos, o leão o teve debaixo, prestes a esquartejá-lo. Já el-rei Garinter lastimava que a mocidade do senhor de Gaula o fizesse por gosto ser pasto de feras. Mas pouco durou o temor que o esfriava, porque el-rei Perion, não perdendo o ânimo no apuro, ensopou a espada no ventre do leão e matou-o.
   Perto soaram as buzinas dos monteiros, que logo vieram e rodearam a seu senhor.
   E do que viu se admirou el-rei Garinter, entre si dizendo que não sem causa el-rei Perion era tido pelo mais esforçado cavaleiro do mundo.

O Romance de Amadis, reconstituído por Afonso Lopes Vieira

(continua)

domingo, 20 de maio de 2012

Cuidado e Desejo

Elisabetta Trevisan

Ao longo de uma ribeira
Que vai pelo pé da serra,
Aonde me a mi fez a guerra
Muito tempo o grande amor,
Me levou a minha dor:
Já era tarde do dia,
E a água dela corria
Por entre um alto arvoredo,
Onde às vezes ia quedo
O rio, e às vezes não.

Entrada era do verão,
Quando começam as aves
Com seus cantares suaves
Fazer tudo gracioso.
Ao ruído saudoso
Das águas cantavam elas:
Todalas minhas querelas
Se me puseram diante;
Ali morrer quisera ante
Que ver por onde passei.
Mas eu que digo – passei!
Andes inda hei-de passar,
Em quanto hi houver pesar,
Que sempre o hi há-de haver.

As águas, que de correr
Não cessavam um momento,
Me trouxera ao pensamento,
Que assim eram minhas mágoas,
Donde sempre correm águas
Por estes olhos mesquinhos,
Que têm abertos caminhos
Pelo meio do meu rosto.
E já não tenho outro gosto
Na grande desdita minha.
O que eu cuidava que tinha
Foi-se-me assim não sei como,
Donde eu certa crença tomo
Que, para me leixar, veio.

Mas, tendo-me assi alheio
De mi o que ali cuidava,
Da banda donde água estava
Vi um homem todo cam,
Que lhe dava pelo cham
A barba e o cabelo.
Ficando eu pasmado dele,
Olhando ele para mi,
Falou-me e disse-me assi:
- «Também vai esta água ao Tejo»

Nisto olhei, vi meu Desejo
Estar de trás triste e só,
Todo coberto de dó,
Chorando sem dizer nada,
A cara em sangue lavada,
Na boca posta ũa mão,
Como que a grande paixão
Sua fala lhe tolhia.
E o velho que tudo via,
Vendo-me também chorar
Começou a assi falar:
- «Eu mesmo sou teu Cuidado
Que noutra terra criado,
Nesta primeiro nasci.
E essoutro que está aqui
É o teu Desejo triste;
Que má hora o tu viste
Pois nunca te esquecerá!
A terra e mar passará
Trespassando a mágoa a ti.»

Quando lhe eu aquisto ouvi,
Soltei suspiros ao choro;
Ali claramente o foro
Meus olhos tristes pagaram
De um bem só que eles olharam,
Que outro nunca mais tiveram.
Nem o tive, nem mo deram,
Nem o esperei somente:
De só ver fui tão contente,
Que pera mais esperar
Nunca me deram lugar.
E n’aquisto, triste estando
Com os olhos tristes olhando

Daquelas bandas d’além,
Olhei e não vi ninguém.
Dei então a caminhar
Rio abaixo, até chegar
À cerca de Montemor.
Com meus males de redor,
Da banda do meio-dia,
Ali minha Fantasia,
D’antre uns medrosos penedos,
Onde aves que fazem medos
De noite os dias vão ter,
Me saiu a receber
Com ũa mulher pelo braço,
Que, ao parecer de cansaço
Não podia ter-se em si,
Dizendo: - «Vês, triste, aqui
A triste Lembrança tua.»
Minha vista então na sua
Pus, dela todo me enchi:
A prima coisa que vi
E a derradeira também,
Que no mundo vão e vêm!

Seus olhos verdes rasgados
De lágrimas carregados,
Logo em vendo-os, pareciam
Que de lágrima enchiam
Contino as suas faces,
Que eram, gran’ tempo, paces
Antre mim e meus cuidados.
Loiros cabelos ondados
Um negro manto cobria:
Na tristeza parecia
Que lhe convinha morrer.
Os seus olhos de me ver,
Como furtados, tirou,
Depois em cheio me olhou.
Seus alvos peitos rasgando
Em voz alta se aqueixando,
Disse assi mui só sentida:
- «Pois que mor dor há na vida
Para que houve aí morrer?»
Calou-se sem mais dizer.
Eu de mi gemidos dando,
Fui-me para ela chorando
Para a haver de consolar...

Nisto pôs-se o sol ao mar,
E fez-se noite escura,
E disse mal à ventura
E à vida, que não morri...
E muito longe dali,
Ouvi de um alto oiteiro
Chamar: - «Bernardim Ribeiro!»
E dizer: - «olha onde estás!»
Olhei de ante e de trás
E vi tudo escuridão,
Cerrei meus olhos então,
E nunca mais os abri,
Que depois que a perdi
Nunca vi tão grande bem.
Porém inda mal, porém!

Romanceiro, Almeida Garrett

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Ítaca

Akseli Gallen Kallela 1906

Quando partir, em direção a Ítaca,
que sua jornada seja longa,
repleta de aventuras, plena de conhecimento.

Não tema Laestrigones e Ciclopes nem o furioso Poseidon;
Você não ira encontrá-los durante o caminho, se
o pensamento estiver elevado, se a emoção
jamais abandonar seu corpo e seu espírito.
Laestrigones e Ciclopes, e o furioso Poseidon
não estarão no seu caminho
se não os carregar em sua alma,
se sua alma não os colocar diante de seus passos.

Espero que sua estrada seja longa.
Que sejam muitas as manhãs de verão,
que o prazer de ver os primeiros portos
traga uma alegria nunca vista.
Procure visitar os empórios da Fenícia
Vá às cidades do Egito,
aprenda com um povo que tem tanto a ensinar.

Não perca Ítaca de vista
pois chegar lá é seu destino.
Mas não apresse seus passos;
é melhor que a jornada demore muitos anos
e seu barco só ancore na ilha
quando você já tiver enriquecido
com o que conheceu no caminho.

Não espere que Ítaca lhe dê mais riquezas.
Ítaca já lhe deu uma bela viagem;
sem Ítaca, você jamais teria partido.
Ela já lhe deu tudo, e nada mais lhe pode dar.

Se no final, achar que Ítaca é pobre,
não pense que ela o enganou.
Porque você tornou-se um sábio, viveu uma vida intensa,
e este é o significado de Ítaca."

Konstantinos Kavafis

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Descobrir o Tarot com as lendas arturianas: Rei de Bastões

Anna-Marie Ferguson, The Arthurian Tarot

Pellinore era o Rei das Ilhas e irmão de Pelles, o Rei Pescador. Em algumas versões da lenda, era o pai de Percival, Lamorak e Dindraine. Nos romances de cavalaria, foi-lhe atribuída a árdua tarefa de perseguir a Besta Glatisant.

Pellinore foi também um aliado de Artur na sua batalha contra os reis rebeldes tendo matado o rei Lot. Mais tarde, os filhos de Lot tornaram-se cavaleiros da Távola Redonda mas continuaram a alimentar o seu ressentimento e a esperar por uma oportunidade para vingarem a morte do pai. O que acabou por acontecer - Gawain e os seus irmãos emboscaram e mataram Pellinore. Como seria de esperar, a sua morte desencadeou uma rixa sangrenta no seio da Irmandade da Távola Redonda.

Significado da Carta: um homem maduro e sábio. A voz da experiência. Força e lealdade. Alguém com quem se pode contar para ajudar. Um líder intuitivo e justo.


sexta-feira, 6 de abril de 2012

Ítaca

Se ao longe imaginares Ítaca,
que não te dê saudades.
Uma ilha é um monte sem caminhos.
Descansam nela as aves migratórias,
e a gente que a povoa
gasta o tempo a sonhar aonde irão
as aves no seu alto voo
quando partirem.
E sobretudo Ulisses há-de
segui-las com os olhos,
lembrando-se de Circe.
O azul, digo-te, é uma cor volúvel,
e o céu e o mar são só desertos.

Nuno Dempster (n.1944), "Dispersão"

Akseli Gallen Kallela 1905

segunda-feira, 2 de abril de 2012

A onda

a onda anda
aonde anda
      a onda?
a onda ainda
ainda onda
     aonde?
     aonde?
a onda a onda

Manuel Bandeira, Poesia Completa e Prosa


sexta-feira, 30 de março de 2012

Canção

Pus o Meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas;
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles, Obra Poética


Artuhr Rackman

sábado, 3 de março de 2012

Praia do Encontro

Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia...

Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem madeira,
- mas branco!, e todo inteiro
para ti...

Brilha uma luz de morte sobre o porto
saído mesmo agora da memória...
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória...

Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o Mar,
a sombra singular
do barco que te dei.

David Mourão-Ferreira, Obra Poética, Lisboa, Bertrand, 1980


Alexandre Séon (1855-1917), Lamentos de Orfeu, 1896

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Descobrir o Tarot com as lendas arturianas: Rainha de Bastões

The Arthurian Tarot, Anna-Marie Ferguson

Dindraine era a filha do rei Pellinore e irmã de Parsifal (ou Perceval). Era também a sábia e virtuosa guia dos Três Eleitos (os que alcançaram o Graal) - Galahad, Parsifal e Bors.

Dindraine reuniu os três cavaleiros após as suas muitas aventuras e tentações e conduziu-os a uma embarcação que os aguardava. Assim que entraram a bordo, um vento misterioso levou-os até a um segundo barco onde encontraram uma espada mágica. Dindraine contou-lhes a história desta espada e do "Golpe Doloroso"... mas isso fica para descobrir com outras cartas do Tarot...

Galahad foi o escolhido para ficar com a espada, mas como o cinto não suportava o peso da arma sagrada, Dindraine cortou o seu cabelo e, juntamente com fios de ouro e seda, teceu uma nova bainha. 

Após regressarem a terra, novas aventuras se sucederam e Dindraine morreu após sacrificar o seu sangue para salvar uma mulher doente. Os cavaleiros, desgostosos, depositaram o seu corpo num barco coberto de seda negra e lançaram-no ao mar.

Significado da Carta: uma mulher de grande força espiritual e compreensão. Sensível ao bem-estar dos outros e encorajadora das aspirações. Uma mulher digna, charmosa e conhecedora, representa o pensamento independente, a força de convicção e o amor pela natureza. Generosidade, coragem, liderança e aprendizagem.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Da margem do sonho

Da margem do sonho
e do outro lado do mar
alguém me estremece
sem me alcançar.

Um bafo de desejo
chega, vago, até mim.
Perfume delido
de impossivel jasmim.

É ele que me sonha?
Sou eu a sonhar?
Sabê-lo seria
desfazer, no vento,
tranças de luar.

Nuvens,
barcos,
espumas
desmancham-se na noite.

E a vida lateja, longe,
num outro lugar.

Luísa Dacosta

Edmund Dulac
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...