Elisabetta Trevisan
Ao longo de uma ribeira
Que vai pelo pé da serra,
Aonde me a mi fez a guerra
Muito tempo o grande amor,
Me levou a minha dor:
Já era tarde do dia,
E a água dela corria
Por entre um alto arvoredo,
Onde às vezes ia quedo
O rio, e às vezes não.
Entrada era do verão,
Quando começam as aves
Com seus cantares suaves
Fazer tudo gracioso.
Ao ruído saudoso
Das águas cantavam elas:
Todalas minhas querelas
Se me puseram diante;
Ali morrer quisera ante
Que ver por onde passei.
Mas eu que digo – passei!
Andes inda hei-de passar,
Em quanto hi houver pesar,
Que sempre o hi há-de haver.
As águas, que de correr
Não cessavam um momento,
Me trouxera ao pensamento,
Que assim eram minhas mágoas,
Donde sempre correm águas
Por estes olhos mesquinhos,
Que têm abertos caminhos
Pelo meio do meu rosto.
E já não tenho outro gosto
Na grande desdita minha.
O que eu cuidava que tinha
Foi-se-me assim não sei como,
Donde eu certa crença tomo
Que, para me leixar, veio.
Mas, tendo-me assi alheio
De mi o que ali cuidava,
Da banda donde água estava
Vi um homem todo cam,
Que lhe dava pelo cham
A barba e o cabelo.
Ficando eu pasmado dele,
Olhando ele para mi,
Falou-me e disse-me assi:
- «Também vai esta água ao Tejo»
Nisto olhei, vi meu Desejo
Estar de trás triste e só,
Todo coberto de dó,
Chorando sem dizer nada,
A cara em sangue lavada,
Na boca posta ũa mão,
Como que a grande paixão
Sua fala lhe tolhia.
E o velho que tudo via,
Vendo-me também chorar
Começou a assi falar:
- «Eu mesmo sou teu Cuidado
Que noutra terra criado,
Nesta primeiro nasci.
E essoutro que está aqui
É o teu Desejo triste;
Que má hora o tu viste
Pois nunca te esquecerá!
A terra e mar passará
Trespassando a mágoa a ti.»
Quando lhe eu aquisto ouvi,
Soltei suspiros ao choro;
Ali claramente o foro
Meus olhos tristes pagaram
De um bem só que eles olharam,
Que outro nunca mais tiveram.
Nem o tive, nem mo deram,
Nem o esperei somente:
De só ver fui tão contente,
Que pera mais esperar
Nunca me deram lugar.
E n’aquisto, triste estando
Com os olhos tristes olhando
Daquelas bandas d’além,
Olhei e não vi ninguém.
Dei então a caminhar
Rio abaixo, até chegar
À cerca de Montemor.
Com meus males de redor,
Da banda do meio-dia,
Ali minha Fantasia,
D’antre uns medrosos penedos,
Onde aves que fazem medos
De noite os dias vão ter,
Me saiu a receber
Com ũa mulher pelo braço,
Que, ao parecer de cansaço
Não podia ter-se em si,
Dizendo: - «Vês, triste, aqui
A triste Lembrança tua.»
Minha vista então na sua
Pus, dela todo me enchi:
A prima coisa que vi
E a derradeira também,
Que no mundo vão e vêm!
Seus olhos verdes rasgados
De lágrimas carregados,
Logo em vendo-os, pareciam
Que de lágrima enchiam
Contino as suas faces,
Que eram, gran’ tempo, paces
Antre mim e meus cuidados.
Loiros cabelos ondados
Um negro manto cobria:
Na tristeza parecia
Que lhe convinha morrer.
Os seus olhos de me ver,
Como furtados, tirou,
Depois em cheio me olhou.
Seus alvos peitos rasgando
Em voz alta se aqueixando,
Disse assi mui só sentida:
- «Pois que mor dor há na vida
Para que houve aí morrer?»
Calou-se sem mais dizer.
Eu de mi gemidos dando,
Fui-me para ela chorando
Para a haver de consolar...
Nisto pôs-se o sol ao mar,
E fez-se noite escura,
E disse mal à ventura
E à vida, que não morri...
E muito longe dali,
Ouvi de um alto oiteiro
Chamar: - «Bernardim Ribeiro!»
E dizer: - «olha onde estás!»
Olhei de ante e de trás
E vi tudo escuridão,
Cerrei meus olhos então,
E nunca mais os abri,
Que depois que a perdi
Nunca vi tão grande bem.
Porém inda mal, porém!
Romanceiro, Almeida Garrett