quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Uma ilha encantada com muitas flores

Dreams II, Heinrich Vogeler


















Numa manhã de S. João, isto já há muitos anos, uma velha da Madalena tinha-se levantado cedo para ir à missa. Costumava pentear-se à janela da cozinha e entretanto ia olhando para o mar e via como estava o tempo. É um costume da gente do Pico ir à janela ao amanhecer, logo que se alevantam, p’ra verem como vai ser o dia. Não há melhor maneira de ver o tempo!
Naquela manhã, ao olhar para o mar em direcção à baixa que ficava lá em frente, ficou tola com o que enxergou: uma ilha com muitas flores estava onde sempre só tinha visto água.
Virou-se para dentro e chamou os parentes com nervosismo, a gaguejar, sem força para pronunciar as palavras. Demorou apenas um instante, voltou-se logo para fora para mirar aquela ilha que, sem saber como, lhe tinha aparecido, mas já não viu nada de diferente. Apenas as águas tranquilas do canal se estendiam azuis como sempre.
Mesmo assim teve forças para ir à missa. Vestiu-se à pressa, amanhou-se como pôde, pôs o xaile por cima de si. O caminho foi mais fácil de passar naquele dia porque ia inquieta para contar a novidade a alguém. Ao chegar à igreja foi logo falar com o padre à sacristia e pô-lo a par do acontecimento estranho. Contudo o pároco não pareceu muito admirado e na sua sabedoria e calma habitual disse-lhe:
— Se a tia tivesse abençoado a ilha, dizendo “Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” ela tinha-se desencantado e nunca mais desaparecia.
Muitas outras manhãs de S. João a velha fez o que sempre costumava, mas nunca mais viu a ilha que ainda hoje continua encantada mesmo ali em frente à Madalena.


FURTADO-BRUM, Ângela, Açores: Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Lenda da Ribeira dos Moinhos















John Duncan, The Turn of the Tide

Havia há muitos anos atrás, no mar, na foz da Ribeira dos Moinhos, no Nordeste, uma linda ilha, onde vivia um rei com a sua família e os seus amados súbditos. Este rei tinha uma filha jovem e muito bonita, que gostava de ir todas às manhãs passear pelas montanhas verdes e frescas da ilha. Quem a via passar não podia deixar de a olhar embevecido e todos os rapazes a cobiçavam pela sua beleza.

Uma certa vez, vindo de um outro reino, chegou à ilha um príncipe muito rico e poderoso, que logo se apaixonou pela filha do rei. Queria casar com ela a toda a força, mas a princesa, dando desculpas e justificações, recusou sempre delicadamente o pedido do príncipe. Ele estava habituado a mandar, era forte e poderoso e teimou, teimou. Mas a princesa não voltou com a sua palavra atrás: não queria casar com ele.

O príncipe ficou cheio de raiva e ódio e tomou uma decisão maldita. Mandou chamar uma bruxa muito poderosa do seu reino. A bruxa com breves e eficazes palavras fez desaparecer a ilha. Toda a alegria e agitação que ali havia se encantou de um momento para o outro.

Mas, ainda hoje em dia, as pessoas do Nordeste, que moram perto deste lugar, vêem, em manhãs de nevoeiro, a dita ilha. Ela aparece no mar, ali muito pertinho, envolta em nuvens leves e transparentes como cambraia. Pode ver-se a azáfama das pessoas a trabalhar no campo, ceifando o trigo louro e curvado do peso das espigas maduras e cheias. Quem olhar com atenção ainda poderá ver a princesa linda como sempre a passear pelo campo.


FURTADO-BRUM, Ângela, Açores: Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999

domingo, 28 de agosto de 2011

A ilha encantada e Beltrão da Cota


Mary Raphael, Britomart e Amoret, 1898

Beltrão da Cota era um jovem escudeiro, desejoso de glória e de feitos ti que o fizessem merecer uma estátua em seu louvor. Não havia outro mais vaidoso nem mais zeloso da sua obrigação. Usava sobre o tronco, como emblema do seu apelido, uma brilhante cota de malha de metal entrelaçado e os metais das suas armas estavam sempre reluzentes, prontos para desempenhar grandes façanhas. Muitas vezes, pelos finais do século dezassete, ouvira seu tio, D. Francisco de Menezes, já velho, reclinado numa poltrona, na sua casa na cidade de Ponta Delgada, contar uma história incrível. Dizia-lhe que indo certa vez em viagem da Terceira para a corte, na nau Esperança, se tinham perdido, devido a uma tormenta que se levantara na véspera do dia de S. Sebastião. Depois de passarem toda a noite rezando ao glorioso mártir, o dia amanhecera admirável e encontraram-se peito de uma ilha nunca vista até então por qualquer marinheiro. Avistaram um grande cais onde passeava gente com cavalos. Aproximando-se tinham visto um rio onde havia navios e galeras. Mas, de repente, ouviram um trovão e tudo desapareceu como por encanto.

Beltrão da Cota, que lia o D. Quixote de la Mancha de Cervantes, andava alucinado com aquela descrição da Atlântica e imaginava vir a ser o descobridor e conquistador dessa ilha misteriosa, assumindo que para tal tinha de pôr em prática a divisa dos Cotas: “Sem sangue não há vitória”.
Embalado nos sonhos de D. Quixote, tinha-se também apaixonado por Casimira de Kent ou do Canto, uma fidalga de Ponta Delgada, descendente do inglês João de Kent. Contudo jurava não se casar com ela antes de honrar o seu nome com esse feito, mesmo que tivesse de vender a alma ao diabo ou morrer na empresa gloriosamente.

Casimira era modesta, simples e, levada pelo amor, desejava apressar o casamento. Vendo que o jovem Beltrão pensava antes de tudo em grandes façanhas, consultou o livro de S. Cipriano e, seguindo as instruções, furtou um lenço ao amado, ensopou-o na pia baptismal e passou-o a ferro, sorvendo o fumo e dizendo algumas palavras mágicas. Feito isto, perfumou o lenço com essência de flor de laranjeira e voltou a metê-lo no bolso de Beltrão.
Estavam num serão em Ponta Delgada. O jovem Cota sentiu logo intensamente o fogo da paixão e dirigiu lindíssimos galanteios a Casimira. Porém, como um tom cavaleiro, sentia que primeiro estava a submissão a Deus e só depois à sua dama.

Numa tarde de Outono, ao voltar da pesca, aproximou-se dele um desconhecido homem do mar que lhe disse ter visto nessa manhã a ilha misteriosa. Combinaram logo ali o embarque para o dia seguinte.
Casimira, ao ser informada desta decisão, ficou possuída por negros presságios e, com todo o carinho de uma mulher apaixonada, tentou que Beltrão desistisse de uma empresa tão arriscada. Nada conseguiu e da janela do solar viu, ao raiar da manhã seguinte, o jovem Cota e o marinheiro desconhecido fazerem vela.
Não tardou que o barco se transformasse num cavalo com asas de águia, cabeça e pés de leão que voava sobre as vagas. O desconhecido marinheiro era o diabo que, à vista da ilha desconhecida, declarou estar ali para servir Beltrão, mas exigia que assinasse com sangue a venda da alma. Beltrão, aterrado, assinou e ao mesmo tempo ouviu-se ribombar um trovão, uma nuvem medonha escureceu os ares e tudo se perdeu no abismo.

O cadáver de Beltrão da Cota, que vendera a alma ao diabo, nunca mais deu à costa micaelense e a ilha misteriosa nunca mais foi encontrada.


FURTADO-BRUM, Ângela, Açores: Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Lenda do Capitão de Deus


Esta é mais uma história lendária de D. Sebastião. Lenda que se confunde, por vezes, com a própria realidade, lenda que possui algo de intangível — esse algo que simboliza, afinal, a essência da eternidade. E se acaso termina, como é da tradição, numa manhã de nevoeiro — começa, em contraste, numa linda manhã de sol. Numa linda manhã de Primavera...

Recuemos no tempo até ao mês de Junho de 1578... No palácio real, em Lisboa, vai uma grande azáfama... A capital portuguesa vive uma das suas maiores horas...
No seu gabinete do paço, o moço rei D. Sebastião escuta extasiado as palavras do padre Luís Gonçalves da Câmara.
— Acreditai, meu Senhor! Aquela terra de Marrocos foi santificada pelo sangue dos mártires portugueses.
O sacerdote fez uma pausa e aproximou-se do jovem soberano. A sua voz tornou-se mais doce. Mais lenta. Mais incisiva.
— Quantas vidas se perderam?... Quantos homens, por amor de Cristo e glória da nossa Fé, ficaram escravos para sempre?... Quantos?
E, como se a resposta viesse do coração, ele cruzou os braços sobre o peito para que a sua voz ganhasse mais ressonância.
— É preciso vingar a memória de todos eles, meu Rei e Senhor!
A testa de D. Sebastião encheu-se de pequenas pregas. Cada prega um pensamento. Cada prega uma decisão.
— Dizeis bem, amigo: é preciso vingar a sua memória... Eu a vingarei!
E enchendo de mais brilho o seu olhar já brilhante, e enchendo de mais força a sua voz já forte, o moço soberano de Portugal quase gritou:
— Estou resolvido a partir!... Irei conquistar Marrocos!
O padre Luís Gonçalves da Câmara ergueu as mãos numa bênção.
— E sereis capitão de Deus!... Nenhum outro nome terá maior projecção na História do que o vosso nome... Nenhuma figura será mais respeitada do que a vossa!
Mas D. Sebastião já não o ouvia. Lentamente, aproximou-se da janela alta e olhou o sol, que tudo fazia resplandecer lá fora. E para si próprio repetiu baixinho, como num êxtase:
— Capitão de Deus!... Serei capitão de Deus!...
E, assim arrastado pelo seu sonho de glória, o jovem rei de Portugal partiu ao encontro da aventura e da morte...

A sua trágica odisseia faz parte da História propriamente dita, desde a abalada do Tejo, depois de muitos dias de tempestade, como que num presságio cruel, até à estadia em Cádis, com uma grande corrida de toiros e um jogo de canas «al uso de Xerez»; desde a arribação a Tânger, quando soavam as doze badaladas da meia-noite, até à sortida em campo aberto, contra cerca de mil mouros, nos arredores de Arzila; desde esse irresistível desejo de se bater contra Abde Almélique, o novo senhor de Marrocos, até à trágica batalha de 4 de Agosto de 1578...

A lenda começou, por assim dizer, na parte final da luta, que durara apenas pouco mais de quatro horas. Já então os últimos companheiros de el-rei lhe suplicavam que fugisse pelo caminho de Arzila, aproveitando uma derradeira oportunidade. E quando Fernando Mascarenhas, rodeado de inimigos por todos os lados, lhe grita desesperado: «E agora, Senhor, que havemos de fazer com tanta multidão?», o rei de Portugal, rompendo de novo a massa compacta dos mouros, respondeu-lhe noutro grito, não de desespero, mas de ousadia: «Fazer o que eu faço!»
A tragédia, porém, estava no fim. Aniquilado o valoroso terço dos soldados algarvios comandados por Francisco Lourenço, D. João de Portugal acerca-se do seu rei e pergunta-lhe: «Que pode haver aqui que fazer, senão morrermos todos?...» Mas D. Sebastião, do alto do seu corcel cansado, olha-o severamente e responde: «Morrer, sim, mas devagar».
E, segundo se vem contando desde então e pelos tempos fora, o rei de Portugal atirou-se para a frente, perdendo-se na turbamulta dos mouros. E alguns teriam ainda ouvido ele bradar:
— Um capitão de Deus nunca se rende!...

Pois conta-se que, desiludido e humilhado, sofrendo dores e lágrimas, padecendo tormentos de alma e de corpo, D. Sebastião se arrastou pelo Mundo, numa vagabundagem de penitência, sem querer voltar ao reino que o esperava... E de terra em terra, de refúgio em refúgio, teria chegado a uma maravilhosa ilha do oceano Atlântico: a ilha de Arguim...
Aí reinava um senhor poderoso, pai de duas encantadoras jovens, qual delas a de mais perturbante beleza.
O moço rei, triste e desalentado, sentiu-se bem nessa terra extraordinária, onde parecia respirar-se paz e felicidade. E solicitou do senhor da terra que a sua presença fosse consentida durante algum tempo.
— Mas quem sois vós? — quis o outro saber, com arrogância.
— Sou... um pobre penitente, que anda expiando pecados cometidos.
— Criminoso, então?
— Não, Senhor!... Sou um capitão de Deus!
E o brado foi tão sincero, tão forte, tão espontâneo, que o senhor da ilha não soube recusar.
— Pois ficai... Ficai o tempo que quiserdes, desde que não perturbeis o nosso viver!
— Assim o juro, Senhor! Pela minha honra!
E de novo a firmeza das suas palavras, o fulgor do seu olhar, o aprumo da sua presença, impressionaram deveras o senhor da ilha. De tal modo que, nessa noite, ele não se pôde calar diante de suas filhas.
— Ficai sabendo que temos agora na ilha um forasteiro bastante estranho.
— Estranho, em quê, meu pai? — perguntou uma delas.
E logo a outra perguntou também:
— Estranho, porquê?
O pai olhou-as. Sorriu. Eram sempre assim. Completavam-se. Depois, tentou explicar a ambas, simultaneamente:
— Bem... parece-me estranho, porque me faz lembrar um guerreiro, mas fala como um trovador... Traz uma grande espada consigo, mas transporta-a como se fosse um alaúde... Compreendem? Existe qualquer coisa nele que eu não compreendo... Apresenta-se humilde como um vencido, mas o seu olhar é brilhante como o de um triunfador...
E as duas filhas, quase ao mesmo tempo, disseram então:
— Queremos conhecê-lo, meu pai!

George Seeley, The Burning of Rome, 1907

No dia seguinte, quando D. Sebastião se ergueu e saiu da tenda que lhe tinham destinado, viu as duas jovens à espera dele.
— Viemos para vos conhecer, senhor forasteiro.
— Aqui estou... Que quereis de mim?
— Saber quem sois.
— Sou... sou um homem sem história para contar.
O mistério adensou a curiosidade das duas irmãs. Olharam-se e sorriram. Mas ele percebeu isso e antecipou-se.
— E vós… quem sois? Posso sabê-lo?
— Decerto que sim... Somos as filhas do senhor da ilha.
O moço rei iluminou o rosto, num ar de admiração.
— Céus! Como é possível haver homem tão afortunado como vosso pai? Além de possuir uma ilha prodigiosa como esta… tem duas filhas como vós!
— Sois lisonjeador...
— Sou sincero!
Fez-se uma pausa. Sentindo que tomara ascendente, o visitante ajuntou:
— Não vos procuro os nomes, porque, se não vos importais, vos chamarei conforme me pareceis... Assim, vós sereis a Esperança... E vós outra sereis a Saudade...
Riram elas, alegres, satisfeitas, envaidecidas. Riu ele também, orgulhoso do efeito suscitado.
E as jovens perguntaram:
— Quereis ser nosso amigo?
E ele respondeu prontamente:
— Sim, com toda a minha alma!
Porém, de súbito, o seu olhar enublou-se e ele disse baixinho:
— Apenas com uma condição...
— Qual? — interrogaram as duas, a medo.
— Não deveis querer saber nada do meu passado... Eu nada vos poderei dizer.
Elas entreolharam-se, de novo, muito sérias. Pensativas. E prometeram que sim.
Daí em diante, a ilha ainda pareceu mais bela aos olhos dos três jovens. Andavam quase sempre juntos — e a sua felicidade pare insuperável... Todavia, um pormenor espicaçava constantemente a atenção das duas raparigas: o jovem forasteiro nunca abandonava a sua espada. Quem sabe? Talvez até dormisse com ela... E tanto pensaram no assunto, que resolveram investigar...

Certa noite, quando o silêncio caíra por completo sobre a ilha, envolvendo-a num manto de estrelas e de luar, as duas irmãs sorrateiramente entraram na tenda onde estava dormindo o jovem forasteiro.
Sim, era verdade! Ele dormia sem abandonar a grande espada que sempre trazia consigo!
Porém o que mais as surpreendeu foi o facto de descobrirem que ele estava dominado por um terrível pesadelo.
Revolvia-se, inquieto e angustiado, chamando entre gemidos e queixumes:
— Vamos a eles, companheiros! Eu sou o Capitão de Deus!... Essa mourama maldita não poderá levar a melhor... Deixai-me, eu sei o que faço… Eu sei o que quero!... Que me dizeis? Que me renda? Nunca! Um rei não se rende!...
A sua respiração era opressa, dava quase ideia de um estertor. Elas tiveram pavor da morte e saíram correndo. Mas dentro de cada uma ficara a frase que não mais lhes sairia da memória: «Um rei não se rende!»

A medo o foram esperar, na manhã seguinte. Apareceria ele, como costumava fazer, alegre, sorridente, assobiando por vezes?...
Pois apareceu assim mesmo. Contudo, notou imediatamente que elas estavam perturbadas. Havia qualquer coisa de diferente na maneira como o olhavam. Havia qualquer coisa de diferente no modo como lhe falavam. Ambas se esquivavam habilmente à curiosidade dele...
Tal ambiente manteve-se durante alguns dias. Até que o moço rei D. Sebastião resolveu atacar o assunto de frente.
— Dizei-me, boas amigas: que se passa convosco... que sois diferentes para comigo?
— Diferentes, nós, porquê?...
— Diferentes, nós, em quê?...
Ele procurou esclarecer.
— Sim... O vosso sorriso já não é tão franco... O vosso olhar já não é tão inocente... Que se passa? Eu preciso de saber... Eu quero saber!
— Falais como um rei, senhor...
A frase ficou suspensa no espaço. Suspensa entre o olhar interrogativo dele e os suspiros fundos delas. E nada mais disseram nesse dia. E nada mais disseram em outros dias...

George Seeley, Black Bowl, 1907

Certa manhã, inesperadamente, aquela a quem ele chamava Esperança procurou-o às escondidas da irmã.
— Perdoai-me, mas quero falar-vos a sós.
— Dizei, Esperança...
— Chamais-me Esperança, e tendes razão: é a esperança que aqui me traz... Eu amo-vos, senhor, e espero ser correspondida por vós...
Foi a vez dele suspirar.
— Se chamais amor à grande amizade que nos une, como irmãos, eu também vos amo, Esperança.
— Não! Eu chamo amor à paixão que pode existir entre dois seres que se desejam, como eu vos desejo e vós me desejais certamente.
— Aí vos enganais, Esperança... Eu já não posso amar assim!
— É a vossa última palavra?
— É a minha última palavra!
Silenciosamente, tristemente, ela abalou. Então, poucos minutos depois, surgiu a outra irmã.
O moço rei fitou-a com simpatia.
— Também vós, Saudade?... Que desejais?
— O vosso amor!
— Como?... Não compreendo... Explicai-vos melhor...
Ela aproximou-se, num ar felino. Rosto com rosto. Corações batendo em surdina.
— Escutai, nobre cavaleiro desconhecido... Sei que vós repudiastes o amor de minha irmã... Escutei a vossa conversa... Por isso, estou convencida que é a mim que vós amais!
— Pois também tenho de desenganar-vos, minha boa, minha doce amiga. Bem gostaria de vos amar, de facto. Mas não posso...
Ela ergueu a voz, num tom mais duro:
— Não podeis... ou não quereis?
Antes de responder, ele suspirou fundo.
— Como entenderdes... Para mim, sereis sempre... a minha Saudade!
Sem mais palavras, ela deslizou no caminho e afastou-se vagarosamente...

O moço rei voltou a viver isolado, pois não mais lhe apareceram as duas jovens. E um dia, o senhor da ilha enviou um emissário a convocá-lo, com a maior urgência.
D. Sebastião não demorou a comparecer.
— Aqui estou, Senhor. Que me quereis com tamanha pressa?
A voz do outro transpirou irritação.
— Quero dizer-vos que traístes o nosso pacto. Eu dei-vos licença para ficar aqui, desde que não provocásseis perturbações na nossa vida.
— É então… de que me acusais?
Num rompante de cólera, o senhor da ilha avançou para ele.
— Ainda ousais perguntar?... Pois não sabeis o que fizestes às minhas filhas? Eram as duas irmãs mais amigas deste mundo... Agora, odeiam-se! E odeiam-se por vossa causa!
O moço rei baixou a cabeça. Vencido. Emocionado.
— Tendes razão... Hoje mesmo sairei desta ilha!

Armand Point (1861-1932), A Eterna Quimera

E assim sucedeu, segundo conta a voz da tradição. Tal como chegara na névoa do mistério, ele abalou também numa manhã de nevoeiro. O nevoeiro que sempre acompanhava a sua vida...
Mas conta a lenda ainda que as duas irmãs, ao saberem dessa abalada, se revoltaram abertamente contra seu pai. E fosse pelo que fosse — por magia ou coincidência, ou por qualquer desígnio superior — verdade é que nesse mesmo momento a ilha de Arguim desapareceu engolida pelo oceano, arrastando consigo a Esperança e a Saudade d’el-rei D. Sebastião... E enquanto se sumia nos mares a ilha de Arguim, ia espontando numa auréola de luz e de encanto outra ilha maior e mais bela: a ilha da Madeira.

E foi aí que o moço rei D. Sebastião, nessa aventura errante e infinita, resolveu deixar para sempre a sua companheira de tantas horas e de tantas honras, essa espada ainda ensanguentada pelas recordações de Alcácer Quibir.
Passando pela ilha da Madeira, D. Sebastião teria fincado a sua espada toda de ouro na rocha do cabo Garajau. E teria dito, numa verdadeira expressão de êxtase:
— Aqui vos deixo, minha bem-amada... Mas um dia virei buscar-vos... Um dia, quando voltar a ser o Capitão de Deus!
E de novo seguiu o seu caminho, deixando a Ilha do Sol e perdendo-se na bruma do futuro.
Porém, para muitos, talvez um dia ele volte, na verdade, a buscar a sua espada ao cabo Garajau, e a desenterrar a Esperança e a Saudade que ficaram sepultadas na ilha que está no fundo do mar...


MARQUES, Gentil, Lendas de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II

D. Sebastião, o Encantado do Ilhéu de Vila Franca


Um pequeno ilhéu ergue-se como uma sentinela de catadura ríspida e dura em frente a Vila Franca, na ilha de S. Miguel e nesse mesmo sítio existe uma ilha encantada povoada de numerosos habitantes.
Em noites de lua, vêem-se vultos de homens como fantasmas brancos. É D. Sebastião que aí vive com os seus companheiros. Nos dias nevoentos, quando a bruma encobre as formas nítidas do ilhéu, vêem-se ondulações de roupa branca que se aproximam da beira do penedo e de lá acenam aos vilafranquenses. Nesses dias, o encantado torna-se visível durante algum tempo e na brisa que sopra brandamente ouve-se uma voz que diz “coragem e fé!”
Uma vez um navio aproximou-se do ilhéu, e descarregou trigo e outros cereais para abastecimento dos encantados que aí vivem à espera do desencantamento.
Esse há-de quebrar-se um dia e D. Sebastião inaugurará um novo império de paz e ventura. Mas a felicidade não será perfeita porque, nesse mesmo momento, a vizinha ilha de Santa Maria desaparecerá com os seus habitantes, submergindo-se nas profundezas do Atlântico.


FURTADO-BRUM, Ângela, Açores: Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999

O rei D.Sebastião e a ilha encantada

Ainda há um século atrás se encontrava muita gente com bilhas cheias de água, vindo da fonte. Iam buscá-la para os arranjos da casa, para os animais. Muitas vezes iam mesmo de noite, quando havia menos pessoas à espera de encher a bilha.
Certa noite de lua cheia, as tias Bastos, da Ribeira Seca da Ribeira Grande, aproveitaram a calada da noite para irem à fonte. Enquanto esperavam que as talhas se enchessem, olhavam o majestoso mar que se estendia no seu azul negro lá ao longe.
De repente viram o mar abrir-se e fazer um longo caminho. Apareceu depois um homem jovem, muito belo, vestido como um rei e montado num cavalo branco. Veio-se aproximando, cavalgando, e ao chegar, perguntou com voz serena:
— Quem vive?
Repetiu a pergunta três vezes, mas as velhas, pasmadas e amedrontadas, puseram as bilhas à cabeça e fugiram sem responder Enquanto corriam para casa, olharam para trás e viram o rei caminhar para o mar de cabeça baixa, em passo vagaroso, fechando-se a estrada atrás dele.
No dia seguinte, as tias Bastos contaram aos vizinhos o que lhes tinha acontecido na noite anterior e ficaram a saber que aquele jovem era o rei D. Sebastião e que, quando o rei lhes perguntou “Quem vive?” deviam ter respondido “D. Sebastião mais a sua nação”. Teriam assim desencantado o rei e a ilha em que vive e que se chama D. Sebastião. Mas ao mesmo tempo que esta ilha se desencantasse, encantar-se-ia uma das ilhas dos Açores de nome feminino.
A ilha e o rei ainda continuam encantados e de sete em sete anos, numa noite de lua cheia, o infeliz rei vem a terra esperando que alguém o desencante.

FURTADO-BRUM, Ângela, Açores: Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999

A Ilha Encantada



Há no Faial uma lenda, que fala de uma Ilha Encantada, que aparece e desaparece, misteriosamente, entre a rocha da Penha d’Águia e o Porto Santo, onde se encontra o rei D. Sebastião.
Diz a tradição oral do povo desta terra que D. Sebastião ergueu a sua espada e batendo com ela na rocha disse: Abre-te terra que eu quero me encantar. E assim continua enfiada a sua lança na rocha da Penha d’Águia.
O povo crê que o Rei Encantado se há-de desencantar e voltar com o seu exército, para derrotar os inimigos da Fé e da Nação.
Conta-se que andando, um dia, uns pescadores a pescar, nessas proximidades, foram surpreendidos pela visão duma terra encantadora, de verdes prados, paisagens deslumbrantes e amenas ribeiras de água cristalina.
Nela viam vacas a pastar, lavandeiras a lavar roupa à margem das ribeiras e roupa a corar ao Sol. Viam também muitas laranjeiras carregadas de laranjas maduras, um palácio com um jardim de lindas flores e um Rei com o seu exército.
Correram os pescadores para na Ilha desembarcar, porém, ao tentarem colocar os pés nela, esta desapareceu como por encanto.


VELOSO, Manuel Teixeira, Faial, Memórias de uma Freguesia, Funchal, Calcamar, 2000

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A Ribeira do Guilherme e a Ilha Encantada

 de Elisabeth Sonrel (1874-1953)


Há muitos anos atrás, lá para as bandas do Nordeste (ilha de S. Miguel), mesmo em frente à Ribeira do Guilherme, existia uma ilha admirável, fértil e rica, constantemente aquecida por um sol de Primavera e onde os ventos eram só suave brisa. Os seus habitantes viviam em palácios dourados e entre todos reinava uma constante ventura. Nesta ilha governava uma formosa princesa, que era o orgulho dos seus súbditos. A pele alvíssima, os cabelos de ouro, os olhos mais azuis que o mar e uma bondade natural faziam da princesa um ser admirável. Embora fosse requestada por grandes senhores e poderosos reis, a jovem rejeitava com humildade todos os pedidos de casamento.

Certo dia aportou à ilha uma embarcação com mensageiros de um riquíssimo monarca que, ao serem recebidos pela princesa, logo declararam a sua missão: pedir-lhe a mão para o seu amo e senhor. Engendraram belos discursos, fizeram promessas maravilhosas, rogaram por fim, mas não conseguiram demover a princesa do propósito de se manter solteira.
Desiludidos, voltaram para a sua distante terra e, depois de uma longa viagem, apresentaram-se perante o rei, que os esperava ansioso, mas seguro de que em breve casaria com a desejada princesa. Quando ouviu pela boca dos emissários a resposta negativa e humilhante, ficou aturdido e furioso.

Sabendo que na última província do seu reino vivia uma fada de fatídicos poderes, mandou-a chamar imediatamente e transmitiu-lhe o seu desejo: queria que a ilha verdejante da princesa, com todos os monumentos, tesouros e habitantes fosse submergida.
A fada, tomando a vara de condão e pronunciando algumas palavras, fez imediatamente a ilha afundar-se no mar em frente à Ribeira do Guilherme, que assim ficou encantada para sempre.
Mas de sete em sete anos, na noite de S. João, a ilha aparece, toda branca, entre densas neblinas, pronta a ser desencantada por um sacerdote que vista as vestes sacrificatórias. Estas circunstâncias têm sido tão difíceis de reunir que a ilha continua encantada.

Uma vez, um navio carregado de trigo foi desviado por força misteriosa e, emergindo das águas um cavaleiro de elmo reluzente, exigiu que o capitão lhe cedesse todo o cereal por preço compensador. O trigo foi descarregado e o cavaleiro desapareceu, satisfeito porque o trigo iria abastecer a população da ilha encantada.
Nas noites de Inverno, quando o mar bravo fustiga os rochedos da costa e entra pela Ribeira do Guilherme, ainda se ouve a bela princesa queixar-se, desolada com o seu destino.


FURTADO-BRUM, Ângela, Açores: Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A ilha de S.Brandão
















Decorria o último quartel do século quinze e a ilha Terceira começava a povoar-se. Muitas pessoas então acreditavam que, algures no Atlântico, ficava a maravilhosa ilha de S. Brandão, o Paraíso. 
Maria, uma jovem terceirense, bondosa e bela, tinha também ouvido falar da história de S. Brandão a um franciscano e, nos serões da sua casa de campo, doutrinava as pessoas rudes e analfabetas, rezava com elas o terço, acabando sempre a devoção com uma oração a S. Brandão.

Por essa altura, chegou à ilha Terceira Vital Dieudonné de Gozou, um jovem que saíra de Rodes para as Baleares e dali para os Açores, em busca da ilha de S. Brandão. Era aspirante a cavaleiro de Rodes e trazia bordada no seu gibão a divisa: “Pela fé”.
Maria e Vital viram-se e apaixonaram-se. O jovem dividiu com a sua dama as relíquias de S. Brandão que trazia ao peito, herdadas de seu avô, e, timidamente, perguntou-lhe se ela lhe correspondia no amor. Mas Maria, talvez receosa do que lhes podia acontecer, respondeu em voz doce e comovida:
— Para te falar do meu amor preciso de estar a sós contigo, onde só Deus nos veja.

Poucas outras vezes se encontraram porque, entretanto, o filho do capitão donatário da ilha Terceira tinha-se apaixonado por Maria e pediu-a em casamento. A jovem, que já tinha entregue o seu coração, recusou o pedido e, como castigo, foi mandada encerrar no quarto mais alto do castelo de S. Luís.
Porém o tempo de clausura e sofrimento não durou muito porque um súbito tremor de terra fez abater o recanto do castelo em que a tinham fechado. No momento em que Maria caía da janela que se desmoronava, dois anjos, transformados em pombas, levaram-na sobre as asas abertas.

A jovem estava maravilhada por não se ter despedaçado na queda, mas também por ver para onde a conduziam, sobre as casas, as árvores, o mar. A vila e a ilha iam ficando para trás e Maria perguntou:
— Lindos Anjos, o Paraíso é ainda muito longe?
— As relíquias de S. Brandão que levas garantem-te o céu, que não fica longe daqui — respondeu um dos Anjos.
Já se via por entre uma bruma azulada um grande bosque, dois rios que corriam mansamente, ladeados de choupos e salgueiros. O jardineiro, S. Brandão, tinha tudo muito limpo. Os rouxinóis entoavam melodias próprias do Céu. Um dos Anjos disse:
— Chegamos, finalmente. Eis o jardim das delícias.

Maria deixou as asas dos Anjos e foi conduzida ao seio dos escolhidos do Senhor por um Querubim.
Lá longe, na Terceira, Vital estava muito infeliz pela morte de Maria e a ilha não tinha já para ele qualquer beleza. Só pensava em voltar a vê-la e embarcou, agora ainda mais decidido, à procura da ilha de S. Brandão, onde sabia que Maria devia estar.

Muitos dias e noites viajou pelo oceano, até que, numa tarde, enxergou no horizonte uma ilha.
Inesperadamente a luz do sol deu lugar à noite, as nuvens tomaram uma cor de chumbo, a superfície das águas escureceu medonhamente. De repente um jacto de luz inundou o espaço enlutado e, subitamente, o barco ficou atracado ao cais com que Vital tantas vezes sonhara.
Como cume da felicidade, ali estava Maria, sorridente e de braços abertos, dizendo-lhe em voz divina:
— Para te falar do meu amor precisava estar a sós contigo, onde só Deus nos visse. Enfim, podemos falar livremente. 

Estavam os dois juntos na ilha de S. Brandão ou Paraíso para gozar a felicidade.


FURTADO-BRUM, Ângela, Açores: Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Em busca...

sábado, 13 de agosto de 2011

"Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar" *

* Fernando Pessoa



sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A Dança dos Gigantes

por Daniel Bower

Salisbury Plain, no sul de Inglaterra, alberga vários monumentos pré-históricos como Woodhenge, Durrington Walls e, o mais famoso, Stonehenge. A sua construção ocorreu em etapas que se prolongaram durante séculos         (desde 3100 a 2800 AC, aproximadamente). Os povos neolíticos do período eram agricultores com um pequeno número de animais domesticados. Por volta de 2500 AC, chegaram pequenos grupos, chamados de Beaker People (por causa da sua cerâmica), que aí se estabeleceram  e miscigenaram com os nativos. Os esforços dessa comunidade contribuiram para a grandeza de Stonehenge - construções e remodelações prolongaram-se até cerca de 1100 AC.

Ao longo dos séculos, quando as suas origens já há muito haviam sido esquecidas, muitas lendas e histórias surgiram sobre este particular círculo de pedras. Alguns sustentam que Stonehenge é o "umbigo" da Grã-Bretanha, o centro a partir do qual se espalhou a criação e onde as energias do céu, da terra e do submundo se unem. Daqui corre o fio da vida, percorrendo toda a Árvore do Mundo, desde as alturas até às profundidades das raízes subterrâneas.

por Daniel Bower

A presença de Stonehenge representará assim a chegada a um ponto do desenvolvimento pessoal em que energias, previamente fragmentadas, se unem, trazendo assim um sentido de completude e uma nova abordagem da vida. O círculo de pedras lembra-nos a natureza circular da vida. A carta do Universo marca o fim dos Arcanos Maiores, mas também a conclusão de um ciclo e a esperança e nova vitalidade anunciadas pela carta do Louco. O mistério de Stonehenge ecoa o mistério da carta do Universo pois contém o elemento do desconhecido.

Quase como seria de esperar, Merlim é associado a Stonehenge. O círculo de pedras teria sido usado pelo grande mago para o estudo das estrelas. Geoffrey de Monmouth, nas suas crónicas, chega a atribuir-lhe a responsabilidade pela construção do templo. 

Segundo a lenda, o rei Vortigern e o seu conselho foram convidados por Hengist, o líder dos Saxões, para discutirem a paz, mas foram mortos à traição pelos guerreiros saxões. Os quatrocentos e sessenta nobres foram depois enterrados numa vala comum em Salisbury Plain.


Anos depois, Ambrosius, depois de conseguir o restauro relativo da paz em todo o reino, decidiu que as vítimas da traição mereciam uma homenagem por meio de um monumento e pediu ajuda a Merlim. Este disse-lhe que se queria um monumento eterno, deveria ordenar a transferência para Salisbury Plain do Anel dos Gigantes - um anel megalítico de pedras erigido no Monte Killarus, na Irlanda. As pedras tinham poderes curativos e Ambrosius concordou, enviando para a Irlanda Merlim, Uther e os seus homens a fim de realizarem todo o processo. E foi graças às artes extraordinárias de Merlim que tamanha empresa foi bem sucedida. 

Uma vez em Salisbury Plain, Merlim ergue de novo as pedras e Ambrosius condecorou o mago pela sua façanha extraordinária. Ainda hoje, os gigantes dançam em Salisbury Plain.


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