domingo, 28 de agosto de 2011

A ilha encantada e Beltrão da Cota


Mary Raphael, Britomart e Amoret, 1898

Beltrão da Cota era um jovem escudeiro, desejoso de glória e de feitos ti que o fizessem merecer uma estátua em seu louvor. Não havia outro mais vaidoso nem mais zeloso da sua obrigação. Usava sobre o tronco, como emblema do seu apelido, uma brilhante cota de malha de metal entrelaçado e os metais das suas armas estavam sempre reluzentes, prontos para desempenhar grandes façanhas. Muitas vezes, pelos finais do século dezassete, ouvira seu tio, D. Francisco de Menezes, já velho, reclinado numa poltrona, na sua casa na cidade de Ponta Delgada, contar uma história incrível. Dizia-lhe que indo certa vez em viagem da Terceira para a corte, na nau Esperança, se tinham perdido, devido a uma tormenta que se levantara na véspera do dia de S. Sebastião. Depois de passarem toda a noite rezando ao glorioso mártir, o dia amanhecera admirável e encontraram-se peito de uma ilha nunca vista até então por qualquer marinheiro. Avistaram um grande cais onde passeava gente com cavalos. Aproximando-se tinham visto um rio onde havia navios e galeras. Mas, de repente, ouviram um trovão e tudo desapareceu como por encanto.

Beltrão da Cota, que lia o D. Quixote de la Mancha de Cervantes, andava alucinado com aquela descrição da Atlântica e imaginava vir a ser o descobridor e conquistador dessa ilha misteriosa, assumindo que para tal tinha de pôr em prática a divisa dos Cotas: “Sem sangue não há vitória”.
Embalado nos sonhos de D. Quixote, tinha-se também apaixonado por Casimira de Kent ou do Canto, uma fidalga de Ponta Delgada, descendente do inglês João de Kent. Contudo jurava não se casar com ela antes de honrar o seu nome com esse feito, mesmo que tivesse de vender a alma ao diabo ou morrer na empresa gloriosamente.

Casimira era modesta, simples e, levada pelo amor, desejava apressar o casamento. Vendo que o jovem Beltrão pensava antes de tudo em grandes façanhas, consultou o livro de S. Cipriano e, seguindo as instruções, furtou um lenço ao amado, ensopou-o na pia baptismal e passou-o a ferro, sorvendo o fumo e dizendo algumas palavras mágicas. Feito isto, perfumou o lenço com essência de flor de laranjeira e voltou a metê-lo no bolso de Beltrão.
Estavam num serão em Ponta Delgada. O jovem Cota sentiu logo intensamente o fogo da paixão e dirigiu lindíssimos galanteios a Casimira. Porém, como um tom cavaleiro, sentia que primeiro estava a submissão a Deus e só depois à sua dama.

Numa tarde de Outono, ao voltar da pesca, aproximou-se dele um desconhecido homem do mar que lhe disse ter visto nessa manhã a ilha misteriosa. Combinaram logo ali o embarque para o dia seguinte.
Casimira, ao ser informada desta decisão, ficou possuída por negros presságios e, com todo o carinho de uma mulher apaixonada, tentou que Beltrão desistisse de uma empresa tão arriscada. Nada conseguiu e da janela do solar viu, ao raiar da manhã seguinte, o jovem Cota e o marinheiro desconhecido fazerem vela.
Não tardou que o barco se transformasse num cavalo com asas de águia, cabeça e pés de leão que voava sobre as vagas. O desconhecido marinheiro era o diabo que, à vista da ilha desconhecida, declarou estar ali para servir Beltrão, mas exigia que assinasse com sangue a venda da alma. Beltrão, aterrado, assinou e ao mesmo tempo ouviu-se ribombar um trovão, uma nuvem medonha escureceu os ares e tudo se perdeu no abismo.

O cadáver de Beltrão da Cota, que vendera a alma ao diabo, nunca mais deu à costa micaelense e a ilha misteriosa nunca mais foi encontrada.


FURTADO-BRUM, Ângela, Açores: Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999
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