terça-feira, 31 de julho de 2012

Lux Feminae

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O Romance de Amadis: II - Darioleta

Paul Delaroche, L' Art Gothique ou le Moyen Âge

Carregados que foram em dois palafréns o leão e o veado, para a vila se encaminharam com grande prazer os senhores; do que sendo avisada a rainha, de mui ricos atavios se enfeitaram os paços e foram postas as mesas. Quando se juntaram para comer, sentaram-se a uma mais alta os dois reis e a rainha, com a infanta Elisena em outra a par desta; e ali foram servidos como em casa de tão bom senhor convinha.

Pois, senhores, sendo a infanta tão virtuosa e Perion tão alto cavaleiro, em tal hora se olharam que o grande recato dela não pôde tanto que não fosse presa de amor; e Perion assim também da infanta, pois seu próprio coração o havia livre. De maneira que, um e outro, todo o tempo estiveram como se as almas que até ali tinham tido lhes tivessem saído dos corpos e outras houvessem entrado que eles próprios não conhecessem. Recolhendo-se a rainha à sua câmara, levantou-se Elisena e, caindo-lhe do regaço um anel que tirara para se lavar, a fim de o apanhar se baixou, quando Perion o tomou e lho deu.

No dar e receber anel, as mãos deles encontraram-se e Perion apertou a da infanta, que, olhando-o com amorosos olhos, lhe agradeceu, corando.
Perion disse-lhe baixinho:
- Não será este o último serviço, pois toda a vida a quero empregar em vos servir!
Tão turbada se foi Elisena que a vista quase perdia. É que o efeito do amor, em alma que fora tão isenta, ia lavrando com dobrado lume.

Não podendo calar dor tão nova, descobriu o seu segredo a uma donzela da corte de quem muito se fiava e se chamava Darioleta. E, com lágrimas nos olhos e ânsia no coração, pediu-lhe conselho sobre como poderia saber se Perion amava outra mulher e se aquele amoroso rosto, com que a estivera olhando, seria prova de amor igual ao seu. Pasmou Darioleta com tal mudança em pessoa para quem estas coisas eram tão desusadas. Teve por caso peregrino que assim, de súbito, quisesse saborear o humano quem até ali desdenhara quanto não fosse divino. Porém logo prometeu servi-la, vendo que o amor não deixara em sua senhora cantinho onde coubessem razão ou conselho.

Determinando-se, pois a ajudar sem detença a nova enamorada, encaminhou-se Darioleta para a câmara d'el-rei Perion, a tempo que o escudeiro de el-rei ia levar os vestidos do seu senhor. Pediu-lhos a donzela, dizendo que ela mesma os levaria.
Tomando por maior honra o que a seu senhor se fazia, deu-lhos o escudeiro; e Darioleta, entrando na câmara de Perion, por este foi reconhecida como a donzela da infanta:
- Boa donzela, que me quereis?
- Senhor, dar-vos de vestir.
- Nu de alegria está meu coração!
- Porquê, senhor?
- Porque sempre livre fui, a este reino livre vim, e agora recebi ferida mortal. Se me achásseis remédio, eu vos daria bom galardão.

Respondeu Darioleta que muito a contentava servir tão bom senhor, se soubesse em quê. Ora, Darioleta sabia muito bem aquilo em que poderia servir el-rei Perion. Mas alegrava-se de o ouvir falar do amor que Elisena lhe merecia, comparava as palavras dele com as que lhe ouvira a ela, e tudo ia encaminhando ao ponto que desejava.
Respondeu-lhe el-rei:
- Se me prometeis guardar segredo do que vos eu disser, descobrindo-o só onde de razão, então direi.
E, prometendo-lho Darioleta, disse-lhe Perion que vivera até ali sem haver empregado o coração; que andava costumado a correr aventuras, mas não a penar cuidados; que em forte hora olhara Elisena, pois tão cuidoso estava que se julgava a ponto de morrer, e enfim que morria se não achasse algum remédio.

- Eu vos digo que nunca pensei que o amor fosse assim! - acabou Perion por confessar. - Mas, pelo que estou sentindo, sei agora como ele é.
Tornou-lhe a donzela:
- Senhor, se me prometerdes como cavaleiro, guardando em tudo  a verdade a que mais obrigado sois como rei, de, a seu tempo, a receber por mulher, então eu farei coisa que não só o coração vos contente, mas também contente o dela, onde mora amor igual. Porém, se o não prometerdes, minha senhora não alcançareis, nem vossas palavras tomarei como de honrado amor.
El-rei Perion, que obedecia também ao mando de Deus para que tudo sucedesse como adiante ouvireis, pôs a mão na cruz da sua espada, e jurou:
- Juro nesta cruz e espada, com que a Cavalaria recebi, de fazer quanto por minha senhora Elisena requerido for.

Alegrou-se Darioleta e despediu-se:
- Pois folgai ora, que eu farei o que vos disse!
Buscando a infanta, contou-lhe quanto se passara com el-rei Perion, e repetiu-lhe as palavras de tão seguro amor que tinha ouvido ao novo enamorado.
Elisena abraçou-a, tomada de uma alegria como não sentira nunca:
- Oh! Minha amiga verdadeira! Mas quando soará a hora em que em meus braços aperte a quem por senhor me foi dado?

Explicou-lhe Darioleta que, dando a câmara de el-rei Garinter para o pomar, a ela iriam seguras quando todos à noite estivessem a dormir. E lembrando-lhe Elisena que na mesma câmara ficava el-rei seu pai, a donzela prometeu que tudo havia de fazer bem.
Quando caiu a noite, Darioleta apartou-se com o escudeiro de el-rei Perion e perguntou-lhe:
- Ora dizei-me lá: quem é a mulher a quem vosso senhor ama com entranhado amor?
- O meu senhor - respondeu, rindo, o escudeiro - ama a todas, mas a nenhuma, afinal!
Ficou a donzela contente de receber resposta que tão bem acertava com o que a tal respeito lhe dissera o próprio Perion.

Neste ponto acercou-se el-rei Garinter e, vendo os dois conversando, perguntou à donzela que tinha ela que dizer àquele escudeiro.
- Por Deus, senhor, ele é que me chamou e disse que seu senhor costuma dormir sozinho em uma câmara, e vossa companhia certo o estorvará.
El-rei Garinter, muito honrado com o hóspede e querendo que ele se achasse bem, logo foi dizer a el-rei Perion que, levantando-se a Matinas, por ter muito em que lidar, o deixaria só para lhe não fazer estorvo.
Quando Darioleta viu que os reposteiros levavam de ali a cama de el-rei Garinter, foi contar à infanta quanto sucedia.

- Senhora - disse-lhe a donzela - fiz quanto vos prometi, mas temo que um dia julgueis que ajudei ao erro.
- Boa amiga - respondeu Elisena -, creio que Deus assim o quer! O que parece agora erro, será ao depois grande serviço seu.
E deste modo estiveram elas até que todos foram dormir.

O Romance de Amadis, reconstituído por Afonso Lopes Vieira

(continua)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O Encoberto

Cavaleiro do Sonho e do Desejo,
guarda no santo Graal,
com a nossa Saudade e o nosso Beijo,
- o sangue de Portugal.

Sonho de além e de glória,
há tanto, há tanto
o sonha um Povo inteiro!
Maravilha e encanto
da nossa história:
- oh Manhã de Nevoeiro...

Oh manhã misteriosa
que alvoreces em nós teu rompante claror,
teu messiânico alvor,
manhã de além, alva saudosa,
- tu és nossa força que não passa,
teu sonho em nós revive ao longe e ao perto,
manhã sem dia, oh manhã de Graça,
em que há de vir o Encoberto...

Místico Paladino iluminado,
que ao areal arrastou nossa alma em flor
e jogou a sorrir nosso destino e sorte,
ele era vivo antes de Desejado,
ele era vivo em nosso sonho e amor,
- e nunca o levou a morte!

Ele é vivo e é eterno! Horas ansiadas
em que o sinto, no meu sangue, em mim...
Ele vive nas Ilhas Encantadas
da nossa alma sem fim...

E, oh maravilha!
em toda a hora do perigo e do temor,
o Encoberto volta da sua Ilha,
e salva-nos, e salva-nos, Senhor!...

E a Esperança imortal,
surda palpita na manhã rompente!
Cerra-se a névoa alucinadamente,
Portugal bóia no nevoeiro...

E o Cavaleiro
do Sonho e do Desejo
guarda no Santo Graal,
com a nossa Saudade e o nosso Beijo,
- o sangue de Portugal.

In Ilhas de Bruma, Afonso Lopes Vieira
Edmund Dulac

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