sábado, 25 de junho de 2011

Lleu


Lleu, "O da Mão Habilidosa", era uma divindade solar, mestre de muitos talentos - carpinteiro, poeta, músico, curandeiro e mágico. Ligado à fertilidade da terra, Lleu presidia ao casamento sagrado entre a terra e o rei. O festival de Lleu é conhecido como Lughnasa e ocorre no primeiro dia de Agosto. Nesta celebração ocorriam corridas de cavalos, jogos e danças.

Lleu era filho de Arianrhod. A sua mãe lançara-lhe uma série de maldições, incluindo a promessa de que não teria um nome se ela não lhe pusesse nenhum, não pegaria em armas se não fosse por ela investido e nunca casaria com uma mulher da raça humana. Com a ajuda do tio Gwydion, que o criou, Lleu venceu todas as interdições, embora a mulher invocada por seu tio e pelo mago Math quase o tivesse votado à desgraça.


Blodeuwedd (cujo nome significa "nascida das flores" ou "rosto de flor") era uma bela mulher encantada. Foi conjurada por Math e Gwydion para que desabrochasse dos botões em flor dos carvalhos, da giesta e da ulmeira, e desposasse Lleu. 

Por uns tempos, o jovem casal foi feliz, mas um dia Lleu foi visitar Math e, na sua ausência, Blodeuwedd ofereceu a sua amável hospitalidade a um caçador que seguia de passagem, Garonwy, o senhor de Pennlyn. Os dois apaixonaram-se e começaram a congeminar o assassínio de Lleu, uma empresa difícil já que Lleu só podia ser morto se tivesse um pé apoiado no dorso de uma cabra e o outro na beira de um caldeirão que tivesse sido usado como banheira, e só uma lança cuja confecção tivesse durado um ano inteiro poderia trespassá-lo.


Embora os dois amantes tivessem conseguido reunir todas as condições para o atacar, ele não morreu, conseguindo desaparecer no céu sob a forma de uma águia. Depois de ter recuperado dos ferimentos e de Gwydion o ter restituído à forma humana, Lleu voltou para se vingar. Ele e o tio perseguiram Garonwy que se escondeu atrás de uma rocha. Foi em vão pois a lança de Lleu perfurou a pedra e matou-o. Por sua vez, Gwydion transformou Blodeuwedd numa coruja, a ave que só mostra a sua face à noite.


Descobrir o Tarot com as lendas arturianas: o Sol

The Arthurian Tarot, Anna-Marie Ferguson

A força crescente do sol que nasce estende o seu calor a Lleu. O sol representa a mente consciente, em contraste com a lua. A sua luz simboliza os pensamentos direccionados que trazem conforto, os planos e os sucessos. Os raios do sol conferem calor, crescimento e permitem a colheita.

Lleu é o correspondente galês, por assim dizer, ao deus irlandês Lug. Traz com ele as bênçãos luminosas do sol e, através do poder da sua luz, surge a ordem após a desorientação lunar. A presença de Lleu também enfatiza o estabelecimento de compromissos. Este deus era evocado no casamento sagrado entre o rei e a terra, uma união da qual o bem estar comum dependia.

A espada invencível de Lleu indica o poder discriminador do intelecto e a sua capacidade de cortar com comportamentos incongruentes ou padrões de pensamento inadequados. Esta ideia é reforçada pelo seu manto vermelho, a cor de Lleu (e mais tarde de Galahad), símbolo da dedicação apaixonada que se manifesta em actividades mundanas.

O cavalo representa o progresso e a sabedoria. Os cavalos feéricos dos heróis eram capazes de percorrer longas distâncias em muito pouco tempo. Muitas vezes, falavam e transmitiam o seu conhecimento aos  cavaleiros.


sábado, 18 de junho de 2011

Descobrir o Tarot com as lendas arturianas: a Lua

The Arthurian Tarot, Anna-Marie Ferguson

Protegida pela magia da lua, Morgana passeia pelos mundos desconhecidos. A lua governa as emoções, crescentes e decrescentes, e os níveis de energia. A sua associação ao inconsciente representa uma inspiração ilimitada para a imaginação. Ao ser a reflectora da luz do sol (o consciente), ela ilumina as dimensões ocultas da mente. As emoções, a intuição e os sonhos trazem à tona assuntos e ideias que antes permaneciam apenas vagos. 

A água simboliza o conhecimento em expansão, contido no subconsciente. Os reflexos na sua superfície representam a dificuldade na compreensão do seu significado, tantas vezes distorcido pela imperfeição dos canais de comunicação. O luar altera não só a paisagem física mas também a psicológica. O que era aceitável à luz do dia, pode tornar-se ameaçador à noite e a viagem torna-se assim uma experiência assustadora e caótica. A crença de que a lua pode causar a perda do juízo está presente em palavras como lunático e aluado.

O corvo poisa calmamente nos ramos, um aviso sinistro destes perigos enquanto que a árvore é ela mesma o símbolo do crescimento involuntário que a psique sofre numa fase destas.

domingo, 12 de junho de 2011

Dindirindin

sexta-feira, 10 de junho de 2011

A rainha de Kachmir

Erko

O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir
Era a diamantes bordado,
Como luar num terrado!...
Parecia o céu estrelado
Ou a visão de um faquir
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.

Se é a Via Láctea, em suma,
não há olhar que destrince!...
Nenhuma vista, nenhuma
jurará se é neve ou pluma,
se é leite, ou astro, ou espuma,
nem o próprio olhar do Lince...
Se é a Via Láctea, em suma,
não há olhar que destrince!

Levava, nas mãos patrícias,
leque de rendas e sândalo...
Oh! que mãozinhas... delícias
para amimar com blandícias,
para beijar com carícias
,que adorariam um Vândalo...
Levava, nas mãos patrícias,
leque de rendas e sândalo.

Cor da lua, os sapatinhos
eram mais subtis que o leque!...
Seu manto, púrpura e arminhos,
não rojava nos caminhos,
pois sua cauda, aos saltinhos,
levava-a um núbio muleque.
Cor da lua, os sapatinhos
eram mais subtis que o leque!

Eis que, no meio da boda,
entrou um moço estrangeiro...
Calou-se a alegria doida
da grande assembleia, em roda!
E a brilhante sala toda
fitou o jovem romeiro.
Eis que, no meio da boda,
entrou um moço estrangeiro...

Pegou no copo, com graça,
e brindou, em língua estranha...
E a rainha, a vista baça,
como a um punhal que a trespassa,
encheu de prantos a taça,
e o seu lenço de Bretanha...
Chorou baixinho, ao ouvir, com graça,
esse brinde, em língua estranha!

Encheu de pranto o vestido,
encheu de pranto os anéis...
E, sem soltar um gemido,
chorou, num pranto sumido,
o seu passado perdido,
os seus amores tão fiéis!...
Encheu de pranto o vestido,
encheu de pranto os anéis.

Quem era o moço viajante
Que fez turbar a rainha?...
Era o seu primeiro amante,
tão leal e tão constante,
que, do seu reino distante,
brindar ao Passado vinha...
Tal era o moço viajante,
que fez turbar a rainha.

Saudades de amor quebrado
fazem lágrimas cair!
Por um brinde ao amor passado,
ficou de pranto alagado
o vestido de noivado
da rainha de Kachmir.
Saudades de amor quebrado
fazem lágrimas cair!...

Gomes Leal(1848-1921), "Serenata de Hilário"

Erko

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Douce Dame Jolie




Douce dame jolie,
Pour dieu ne pensés mie
Que nulle ait signorie
Seur moy fors vous seulement.

Qu'adès sans tricherie
Chierie
Vous ay et humblement
Tous les jours de ma vie
Servie
Sans villain pensement.

Helas! et je mendie
D'esperance et d'aïe;
Dont ma joie est fenie,
Se pité ne vous en prent.

Douce dame jolie,
Pour dieu ne pensés mie
Que nulle ait signorie
Seur moy fors vous seulement.

Mais vo douce maistrie
Maistrie
Mon cuer si durement
Qu'elle le contralie
Et lie
En amour tellement

Qu'il n'a de riens envie
Fors d'estre en vo baillie;
Et se ne li ottrie
Vos cuers nul aligement.

Douce dame jolie,
Pour dieu ne pensés mie
Que nulle ait signorie
Seur moy fors vous seulement.

Et quant ma maladie
Garie
Ne sera nullement
Sans vous, douce anemie,
Qui lie
Estes de mon tourment,

A jointes mains deprie
Vo cuer, puis qu'il m'oublie,
Que temprement m'ocie,
Car trop langui longuement.

Douce dame jolie,
Pour dieu ne pensés mie
Que nulle ait signorie
Seur moy fors vous seulement.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O dragão de fogo


Nos tempos turbulentos que antecederam o reinado de Artur, a terra era governada (de acordo com as crónicas de Geoffrey de Monmouth) por Constantino. Após a sua morte às mãos de um Picto, Vortigern usurpou o trono  da seguinte forma: Constantino tinha três filhos, sendo o mais velho um monge chamado Constans. Vortigern encorajou Constans a deixar o mosteiro e assumir o poder, mas pouco tempo depois também ele foi assassinado. E assim Vortigern ocupou o trono.

Os guardiões dos dois filhos mais novos de Constantino, a fim de salvar a vida das crianças, levaram-nos então para longe da ambição perigosa de Vortigern. Os dois rapazes constituíam assim a esperança da Bretanha - Aurélio Ambrósio e Uther, este último o futuro pai de Artur.


Enquanto os rapazes cresciam e aprendiam as artes da guerra, as políticas de Vortigern conduziram o reino à desgraça. Os mercenários Saxões que tinham sido contratados para defender a terra de invasores, tornaram-se também eles numa ameaça. Apesar disto, Vortigern, enlouquecido de desejo, entregou ao líder dos Saxões, Hengist, a terra de Kent em troca da sua bela filha Rowena. O povo revoltou-se por ter agora uma rainha Saxã.

Devido ao tumulto, Vortigern procurou refúgio em Gales (ver a fortaleza de Vortigern). Por estas alturas, dá-se o regresso triunfante de Ambrósio e Uther. Conduziram o seu exército até Gales e sitiaram Vortigern. A sua fortaleza foi incendiada na batalha e as chamas puseram fim à sua tirania. Os irmãos viraram depois a sua atenção para os Saxões e capturaram Hengist, que foi depois condenado à morte pelo assassínio de vários nobres Bretões.

E assim a Bretanha iniciou uma lenta recuperação, governada pelo sábio Ambrósio. No entanto, quando este morreu envenenado, o povo, ainda marcado pelo sofrimento, temeu o pior. Foi neste tempo de precariedade que um faiscante cometa atravessou os céus. A sua forma assemelhava-se a um dragão e Merlin anunciou que era um bom auspício para Uther Pendragon ("Cabeça do Dragão"), e para o seu futuro herdeiro, que traria a união e a paz à terra. 

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Descobrir o Tarot com as lendas arturianas: a Estrela

The Arthurian Tarot, Anna-Marie Ferguson

O dragão de cometas traz a promessa de uma nova era. A tempestade da Torre passou e o céu limpo indica calma e paz. O cometa alumia os céus e os corações das pessoas. A estrela instiga grande esperança e fé em melhores dias que hão-de vir. As estrelas mais pequenas representam as aspirações e a chegada do cometa encoraja-nos a tentar alcançá-las.

Os cavaleiros encontram-se numa área descoberta, reflectindo liberdade. Os ventos sopram as teias tecidas pela mente e limpam-na de detalhes complicados e folhas mortas. Sejamos capazes de ver as situações numa perspectiva mais alargada. Os cavaleiros maravilham-se com a visão da noite iluminada. Podemos pois descansar um pouco e contemplarmos simplesmente.

Um dos cavaleiros traz água do lago; a água é a fonte da vida: ela purifica e cura os extenuados. Com este rejuvenescimento e a visão mais clara, consegue-se retirar força e inspiração da beleza circundante - a luz dos pirilampos aquece os corações.

sábado, 4 de junho de 2011

Dom Gaifeiros

Kandinsky

Sentado está Dom Gaifeiros
Lá em palácio real,
Assentado ao tabuleiro
Para as tábulas jogar.
Os dados tinha na mão,
Que já os ia deitar,
Senão quando vem seu tio
Que lhe entra a pelejar:
– «Para isso és, Gaifeiros,
Para os dados arrojar;
Não para ir tomar damas,
Com a moirisma jogar.
Tua esposa lá têm moiros,
Não sabes ir buscar:
Outrem fora seu marido,
Já lá não havia estar.»
Palavras não eram ditas,
Os dados vão pelo ar...
A que não fora o respeito
Da pessoa e do lugar,
Távolas e tabuleiro
Tudo fora espedaçar.
A seu tio, Dom Roldão,
Tal resposta lhe foi dar:
– «Sete anos a busquei, sete,
Sem a poder encontrar;
Os quatro por terra firme,
Os três sobre águas do mar.
Andei por montes e vales,
Sem dormir, nem descansar;
O comer, da carne crua,
No sangue a sede matar.
Sangue vertiam meus pés
Cansados de tanto andar;
E os sete anos cumpridos
Sem a poder encontrar.
Agora a saber sou vindo
Que a Sansonha foi parar;
E eu sem armas nem cavalo
Com que a possa ir buscar:
Que a meu primo Montezinhos
Há pouco os fui emprestar
Para essa festa de Hungria
Onde se foi a justar.
Mercê vos peço, meu tio,
Se ma vós quiséreis dar,
Vossas armas e cavalo
Que mos queirais emprestar.»
– «Sete anos são cumpridos,
Bem nos deves de contar,
Que Melisendra é cativa
E a vida leva a chorar.
E sempre te vi com armas,
Com cavalos a adestrar;
Agora que estás sem eles
É que a queres ir buscar?
Minhas armas não te empresto
Que as não posso desarmar;
Meu cavalo bem vezeiro,
Não o quero mais vezar.»
– «As vossas armas, meu tio,
Que mas não queirais negar
A minha esposa cativa
Como a hei-de eu ir buscar?
– Em São João de Latrão
Fiz juramento no altar,
De a ninguém não prestar armas
Que mas faça acobardar.»

Dom Gaifeiros, que isto ouviu,
A espada foi a tirar;
Saltam-lhe os olhos da cara
De merencório a falar:
– «Bem parece, mal pesar!
O muito amor que me tendes
Para assim me afrontar.
Mandai-me dizer por outrem
Que me las possa pagar,
Essas palavras, meu tio,
Que vos não quero tragar.»
Acode ali Dom Guarino,
O almirante do mar,
Durandarte e Oliveiros
Que os vêm a separar;
Com outros muitos dos Doze
Que ali sucedeu de estar.
Dom Roldão muito sereno
Assim lhe foi a falar:
– Bem parece, Dom Gaifeiros,
Bem se deixa de mostrar
Que a falta de anos, sobrinho,
Em tudo vos faz faltar.
Aquele que mais te quer
Esse te há-de castigar:
Foras tu mau cavaleiro,
Nunca eu te dissera tal,
Porque sei que tu és bom, to disse...
E agora, armar e selar!
Meu cavalo e minhas armas
Aí estão a teu mandar,
E mais, terás o meu corpo
Para te ir acompanhar.»
– «Mercês, meu tio, hei-de ir só,
Só, tenho de a ir buscar.
Venham armas e cavalo
Que já me quero marchar,
De covarde a mim! ninguém
Nunca ninguém me há-de apelidar.»
Dom Roldão a sua espada
Ali lhe foi entregar:
– «Pois só queres ir, sobrinho,
Esta te há-de acompanhar.
Meu cavalo é generoso,
Não o queiras sopear;
Dá-lhe mais rédea que espora,
Nele te podes fiar».

Herbert Schmalz

Andando vai Dom Gaifeiros,
Andando de bom andar.
Por essas terras de Cristo,
Té a Moirama chegar.
Ia triste e pensativo,
Cheio de grande pesar;
Melisendra em mãos de moiros,
Como lha há-de sacar?...
Pára às portas de Sansonha
Sem saber como há-de entrar:
Estando neste cuidado
As portas se abrem de par.
El-rei com seus cavaleiros
Saía ao campo a folgar;
Mui galãs iam de festa,
Mui ledos a cavalgar.
Furtou-lhe as voltas de Gaifeiros,
Pelas portas foi entrar;
Deu com um cristão cativo
Que ali andava a trabalhar:

– «Por Deus te peço cativo,
E ele te venha livrar!
Assim me digas se ouviste
Nesta terra anomear
A uma dama cristã,
Senhora de alto solar,
Que anda cativa entre moiros
E a vida leva a chorar.»
– «Deus te salve, cavaleiro,
Ele te venha ajudar!
A assim me dê outra vida,
Que esta se vai a chorar.
Pelos sinais que me destes,
Já bem te posso afirmar
Que a dama que andas buscando
Em palácio deve estar.
Toma essa rua direita
Que leva ao paço real,
Lá verás pelas janelas
Muitas cristãs a folgar.»
Tomou a rua direita
Que no passo vai dar
Alçou os olhos ao alto,
Melisendra viu estar,
Sentada àquela janela
Tão entregue a seu pensar,
Que as outras em redor dela
Não nas sentia folgar.
Rua abaixo, rua acima
Gaifeiros a passear.
– «Oh que lindo cavaleiro,
De tão gentil cavalgar!»
– «Melhor sou jogando às damas,
Com moiros a batalhar!»
Melisendra que isto ouviu
Começava a chorar:
Não já que ela o conhecesse,

Mary Raphael

Nem tal se podia azar,
Tão coberto de armas brancas,
Tão dif ‘rente no trajar;
Mas por ver um cavaleiro
Que lhe fazia lembrar
Aqueles Doze de França,
Aquela terra sem par,
As justas e os torneios
Que ali soíam de armar
Quando por sua beleza
Andavam a disputar.
Com voz chorosa e sentida
Começou de o chamar:
– «Cavaleiro, se a França ides,
Recado me heis levar,
Que digais a Dom Gaifeiros
Por que me não vem buscar.
Se não é medo de moiros
De com eles pelejar,
Já serão outros amores
Que o fizeram olvidar...
Enquanto eu presa e cativa
A vida levo a chorar
E mais se este meu recado,
O não quis aceitar.
Dá-lo-eis a Oliveiros
A Dom Beltrão o heis-de dar.
E a meu pai o Imperador
Que já me mande buscar,
Pois me querem fazer moira
E de Cristo renegar.
Com um rei mouro me casam
De além das bandas do mar,
Dos sete reis de Moirama
Rainha me hão-de coroar.»
– «Esse recado, senhora,
Vós mesma lho haveis de dar;
Dom Gaifeiros aqui o tendes
Que vos vem a libertar.»

Palavras não eram ditas,
Os braços lhe foi a dar,
Ela do balcão abaixo
Se deitou sem mais falar.
Maldito perro de moiro
Que ali andava a rondar!
Em altos gritos o moiro
Começava a bradar:
– «Acudam à Melisendra,
Que a vêm os cristãos roubar.»
«Melisendra minha esposa,
Como havemos de escapar?
– «Com Deus e a Virgem Maria
Que hão-de acompanhar.»
– «Melisendra, Melisendra,
Agora é o esforçar!»
Aperta a cilha ao cavalo,
Afrouxa-lhe o peitoral,
Saltou-lhe em cima de um pulo
Sem pé no estribo poisar.
Tomou-a pela cintura,
Que o corpo ergueu por lhe dar;
Assenta a esposa à garupa
Para que o possa abraçar,
Finca esporas ao cavalo,
Que o sangue lhe fez saltar.
Aqui vai, acolá voa...
Ninguém no pode alcançar.
Os moiros pela cidade
A correr e a gritar;
Quantas portas ela tinha
Todas as foram cerrar.
Sete vezes deu a volta
Da cerca sem a passar,
O cavalo às oito vezes
De um salto a foi saltar.
Já os moiros da cidade
O não podem avistar:
Acode o rei Almançor
Que vinha de montear,
Com todos seus cavaleiros
Lá deitam a desfilar,
Sentiu logo Dom Gaifeiros
Como o iam alcançar:
– «Não te assustes, Melisendra,
Que é força aqui apear
Entre estas árvores verdes
Um pouco me hás-de aguardar.

Edward Charles Hallé

Enquanto eu volto a esses cães
Que os hei-de afugentar.
As boas armas que trago
Agora as vou a provar.»
Apeou-se Melisendra,
Ali ficava a rezar.
O cavalo, sem mais rédea,
Aos moiros se foi voltar:
Cansado ia de fugir
Que já mal podia andar,
Cheirou-lhe ao sangue maldito,
Todo é fogo de abrasar
Se bem peleja Gaifeiros,
Melhor é seu pelejar;
A qual dos dois anda a lida
Mais moiros há-de matar
Já caem tantos e tantos
Que não têm conto nem par;
Com o sangue que corria
O campo se ia a alagar.
Rei Almançor que isto via,
Começava de bradar
Por Alá e Mafamede
Que o viessem amparar:
«Renego de ti, cristão,
E mais do teu pelejar!
Não há outro cavaleiro
Que se te possa igualar,
Será este Urgel de Nantes,
Oliveiros singular,
Ou o infante Dom Guarim
Esse almirante e do mar?
Não há nenhum dentre os Donze
Que bastasse para tal...
Só se fosse Dom Roldão
O encantado sem par!»

Dom Gaifeiros que o ouvia,
Tal resposta lhe foi dar:
– «Cala-te daí, rei moiro,
Cala-te, não digas tal,
Muito cavaleiro em França
Tanto como esses val.
Eu nenhum deles não sou,
E me quero nomear:
Sou o infante Dom Gaifeiros,
Roldão meu tio carnal,
Alcaide-mor de Paris
Minha terra natural.»

Não quis o rei mais ouvir
E não quis mais porfiar,
Voltou rédeas ao cavalo,
Foi-se em Sansonha encerrar.
Gaifeiros, senhor do campo,
Não tem com quem pelejar;
Cheio de grande alegria
Melisendra foi buscar.
– «Ai! se vens ferido, esposo?
Eram tantos esses moiros,
E tu só a batalhar.
Mangas de minha camisa,
Com elas te hei-de pensar;
Toucas de minha cabeça
Faixas para te apertar.»
– «Cala-te daí, infanta,
E não queiras dizer tal;
Por mais que foram n‘os moiros,
Não me haviam fazer mal:
São de meu tio Roldão
Estas armas de provar;
Cavaleiro que as trouxesse,
Nunca pode perigar.»

Cavalgam, vão caminhando,
Não cessam de caminhar,
Por essa Moirama fora
Sem mais temor nem pesar;
Falando de seus amores
Sem de mais nada pensar.
Em terras de cristandade
Por fim vieram a entrar.
A Paris já são chegados,
Já saem para os encontrar,
Sete léguas da cidade
A corte os vai esperar.
Saía o Imperador
A sua filha a abraçar;
Palavras que lhe dizia,
As pedras fazem chorar.
Saíu toda a fidalguia,
Cleresia e secular,
Os Doze Pares de França,
Damas sem conto nem par.
Dona Alda com Dom Roldão

E o almirante do mar,
O arcebispo Turpim
E Dom Julião de além-mar,
E o bom velho Dom Beltrão,
E quantos soem de estar
Ao redor do Imperador
Em sua mesa a jantar.

Grande honra a Dom Gaifeiros!
Os parabéns lhe vão dar;
Por sua muita bondade
Todos o estão a louvar,
Pois libertou sua esposa
Com valor tão singular.
As festas que se fizeram
Não têm conto nem par.

Romanceiro, Almeida Garrett
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