domingo, 29 de agosto de 2010

Mistérios femininos: o corpo como vaso sagrado



Imaginamos o Graal como um cálice e, a maior parte das vezes, como o cálice cheio de vinho que Jesus ergueu na Última Ceia."Este é o meu sangue..." - as suas palavras e atitudes passaram a estar ritualizadas na comunhão cristã. Quando pensamos que, como recipiente arredondado, um cálice é um símbolo feminino, a ideia de um vaso cheio de sangue sugere o útero feminino e, então, o Graal adquire a possibilidade de um outro significado - o de um símbolo feminino sagrado ou misterioso, algo de transformador e curativo, com uma dimensão venerável ou divina do feminino.

Neste novo milénio, a Deusa emerge de novo - a preocupação com o planeta e a sua ressacralização, a nova avaliação do aspecto feminino da divindade, o conhecimento intuitivo da sacralidade e da sabedoria do corpo. A Terra começa novamente a ser olhada como um organismo vivo - Geia, a deusa da Terra dos Gregos. O regresso da consciência da Deusa é um regresso do Graal, mas ainda no limiar, na bruma... porém, já apercebido por muitos...

A necessidade do regresso ao Graal e à Deusa é uma história simultaneamente individual e global, que incide sobre feridas e curas, sobre esperança, integralidade e união com o todo. Se somos seres espirituais percorrendo um caminho humano, e não seres humanos que podem estar a transitar por um caminho espiritual, então a vida não é só uma jornada mas também uma busca, uma peregrinação ou uma demanda. O labirinto, como imagem, e a Lenda do Graal, como história, são alegorias que nos podem ajudar a perceber a dimensão espiritual da nossa vida.

Na Lenda do Graal, apenas três dos muitos cavaleiros que partem de Camelot o vêem realmente: Galahad, Parsifal e Bors. Galahad, o cavaleiro puro, encontra o Graal e deixa a terra numa nuvem de êxtase; Parsifal, o tolo inocente, regressa ao Castelo do Graal e torna-se no novo Rei e Guardião do Graal; Bors, o homem terra-a-terra, regressa a Camelot para contar a história. Os três cavaleiros representam três maneiras de abordar o mistério. Para Galahad, está reservado o caminho do Espírito, a comunhão directa com Deus-Pai; para Parsifal, o caminho da dedicação, do Coração, que obriga a um percurso longo e difícil na direcção da auto-realização;e, para Bors, que observa os acontecimentos, mas se mantem um pouco afastado destes, o caminho da contemplação, da Mente.

Espírito, Coração e Mente são os três caminhos representados pelos três cavaleiros que encontram o Graal. A possibilidade de experimentar o Graal através do corpo foi ignorada. Que o sagrado possa passar pelo corpo é negado em todo o lado pelas regiões patriarcais. Ora, os mistérios femininos são do corpo.

Num contexto espiritual, um mistério é uma verdade religiosa que apenas se pode saber por revelação. Vem da palavra grega mystes, que, antes do Cristianismo, estava associada a Elêusis, o recinto sagrado da deusa-mãe Deméter e sua filha Perséfone. O iniciado passava por uma profunda experiência transformadora que ele, ou ela (ambos os sexos participavam), tinha de manter em segredo. Para não poder ser revelado por palavras, ao longo de tantos milhares de anos, é porque o mistério deve ter sido a experiência em si, uma revelação inefável que transformava o participante num iniciado que nunca mais temeria a morte.

Sabemos que o mito de Deméter e Perséfone celebra a reunião da deusa-mãe com a filha, que fora raptada por Hades para o Mundo Inferior. Pode partir-se do princípio que, assim como o Cristianismo é uma religião de mistério pai/filho, assim os mistérios euleusínios mãe-filha tratavam da morte e regresso - como ressurreição, renascimento ou reunião - e que, de certo modo, o iniciado podia compartilhar do destino da deidade que ultrapassara o reino dos mortos.

Para se ser iniciado num mistério, há que haver, psicologicamente, uma experiência mística que nos modifique. Deixa-se de se ser o que se era antes. É frequente uma iniciação ter uma faceta de isolamento, de confronto com o medo, ou uma provação. Mas também pode surgir como uma dádiva da graça, em que uma beleza profunda apareceu num momento sublime do qual fizemos parte. A morte da antiga forma e a nova vida, ou nascimento, são fundamentais nas iniciações.

A gravidez pode ser uma experiência iniciática. Simbolicamente, a rapariga morre para surgir a mãe grávida. Uma mulher grávida compartilha, mesmo sem o saber, da essência da Deusa como criadora, que concebeu toda a vida a partir do seu próprio corpo. As palavras dirigidas à Virgem Maria podem muito bem ajustar-se à sua experiência:" Abençoada sou eu entre as mulheres, e abençoado o futo do meu ventre." Estas palavras dão voz à sabedoria intuitiva e mística que pode emergir nas mulheres no momento da revelação, quando compreendem que são unas com a Deusa. Quando assim acontece, a gravidez é uma barca que transporta a mulher para Avalon e o reino da Deusa, através das brumas.


Uma mulher grávida será transformada pela experiência que lhe afecta corpo e psique, sendo significativo o potencial renascimento de que é alvo - aquilo em que ela se transformará em consequência dessa viagem. A gravidez pode ser assim como a criatividade que surge quando mergulhamos nas nossas próprias profundezas e somos transformados enquanto executamos uma obra - um trabalho criativo que brota da alma e é filho desta.

A experiência maternal também se aprofunda na amamentação que pode ser vista como uma comunhão sagrada. Uma mãe que aleita o filho está a expressar sem palavras "toma, come, este é o meu corpo; bebe, este é o meu sangue", porque é literalmente do corpo e do sangue que é feito o leite feminino.

Os mistérios femininos são do corpo e da psique. Uma mulher não tem de ser uma mãe biológica para se tornar uma iniciada na faceta maternal da Deusa. Por instinto, pode doar aos outros um útero psicológico. Pode fazê-lo numa profissão em que preste auxílio ou ensine, ou como esposa, mãe ou amiga. Pode também dar à luz um trabalho criativo, que lhe vem do útero da sua experiência pessoal em que foi obrigada a sondar as suas próprias profundezas como mulher, a labutar para o dar ao mundo.


Se a gravidez é uma iniciação, a menarca, a menstruação e a menopausa são mistérios do sangue. Mas para a fisiologia se tornar em mistério, uma mulher tem de se sentir, compreender-se ou imaginar-se como Mulher, como Deusa, como uma encarnação do princípio feminino; uma tarefa bastante dificultada, ao longo dos tempos, pela sociedade patriarcal. Há outro mistério de sangue iniciático: a desfloração de uma virgem, que sangra quando do rompimento do hímen. Contudo, esta experiência física precisa de ter uma componente sagrada para realmente iniciar a mulher. Ela não se transforma automaticamente numa mulher sapiente ao perder a virgindade. Se se aperceber de que está a participar num momento sagrado no qual ela e a deusa (neste caso, Afrodite) são uma só, será possível então passar por uma experiência sacramental nas relações amorosas. 

Tal como uma mulher entrega o seu corpo para ser um receptáculo na gravidez, de certa maneira, as mulheres que são mediums místicas tornam-se no cálice donde pode emergir a consciência - assim funcionavam, por exemplo, as sibilas ou as pitonisas de Delfos. Nesse momento específico, elas estão a dar à luz a consciência da Deusa.


Quando a mulher encara o seu corpo como manifestação viva da Deusa, e se transforma assim numa iniciada dos mistérios femininos, então passa a saber que é portadora de um cálice sagrado e que o Graal se manifesta em si.


Referência Bibliográfica:

BOLEN, Jean, Travessia para Avalon, Planeta Editora, 1995

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