quinta-feira, 22 de julho de 2010

Travessia para Avalon

Na lenda de Glastonbury, o Poço do Cálice e o Poço Sagrado de Avalon são considerados uma só e a mesma coisa. O poço é uma nascente situada entre o Tor de Glastonbury e o Monte do Cálice. Ergue-se dentro de um poço, em pedra, com quase três metros de profundidade e corre abundantemente, dando cerca de vinte e cinco galões por dia. A água contém ferro e, embora pareça cristal límpido, o curso de água raso e os poços onde aflui estão manchados de vermelho, devido a esse mesmo ferro. Dantes, chamavam-lhe Fonte do Sangue ou Poço do Sangue.

Mais uma vez, o nome Poço do Cálice e a água tingida de ferro sugerem um vaso sagrado cheio de sangue, desta vez brotando da Terra-Mãe no local que "era Avalon". (...)

Poços sagrados alimentados por fontes no subsolo encontraram-se, muitas vezes, em locais da deusa. O poço pode ter sido ignorado mais tarde, desde que o sítio se tornou cristão - como na Catedral de Chartres, onde o poço está numa cripta, com a tampa aferrolhada. Ou um poço outrora consagrado à Deusa pode ter passado a ter outro nome, depois de consagrado de novo a uma santa: na Irlanda, esses poços tornaram-se "poços da Brígida", por causa de Santa Brígida. Na mitologia e lendas, Deusa e poço encontram-se juntos com frequência. Na mitologia nórdica, como no ciclo operático de Richard Wagner de O Anel dos Nibelungos, por exemplo, a Deusa (Erda) era uma fonte de sabedoria, e beber da nascente era um meio de "mergulhar" nessa fonte.

O jardim do Poço do Cálice tem um muro em volta e entra-se nele por um portão. No entanto, mesmo quando não está aberto aos visitantes, um fluxo contínuo de água sai por um desaguadouro para o lado da rua, onde as pessoas podem encher as vasilhas e beber, a qualquer hora.

Dion Fortune escreveu sobre o Poço do Cálice, em Avalon of the Heart, dizendo que há uma grande câmara que se abre na parede do poço, ou um recesso suficientemente grande para uma pessoa estar aí de pé, ou o Graal ser escondido, e que no solstício de Verão um raio de luz brilha direito a essa câmara interior. A câmara é feita de grandes blocos de pedra, como os usados em Stonehenge, pedra essa que se não consegue encontrar nas proximidades. O trabalho de pedreiro é perfeitamente verosímil e exacto, para ali trazido e construído por meios que não conseguimos imaginar. (...)

(...) Há muitas coisas relativas a Glastonbury que têm ar de não pertencerem a este Mundo.

VESICA PISCIS

Em latim, vesica piscis significa "vaso do peixe". O desenho básico provém da sobreposição das bordas de dois círculos de igual tamanho, passando a circunferência de cada um pelo meio do outro, e criando assim uma forma em amêndoa ou oval pontiagudo entre ambos.

Quando os dois círculos estão um sobre o outro, a forma intercalar torna-se no contorno do corpo de um peixe, que é símbolo de Cristo, um símbolo fácil de desenhar, que os primeiros cristãos usavam para se identificar pessoalmente uns aos outros. Diz-se que a razão do uso de um peixe como símbolo cristão era a palavra grega para peixe, ichthys, poder ser um acrónimo para Jesus Cristo, Filho de Deus.


Todavia, antes de se tornar um símbolo cristão, a vesica piscis era um símbolo universal da Deusa-Mãe, representando a mandorla, em forma de amêndoa, um contorno da sua vulva, donde brotava toda a vida. Para ser um símbolo da Deusa, os círculos sobrepunham-se lado a lado, e a forma amendoada tinha as pontas bicudas para cima e para baixo.


Quanto ao nome vesica piscis, diz-se que a vulva tem um ligeiro cheiro a peixe: na Grécia, a palavra delphos significa tanto útero como peixe, e há muitas associações culturais cruzadas entre deusa e peixe. As imagens da porta do templo à deusa hindu Kali e a figura feminina Sheela-na-gig, que estava gravada ou esculpida no arco de entrada das antigas igrejas irlandesas, exibem as vulvas como vesicas. E também há muitos medalhões católicos com essa forma.

A vesica piscis na tampa do Poço do Cálice incorpora os círculos sobrepostos, mas tem um desenho mais complicado. Os dois círculos estão contidos num círculo maior, ou rodela. Em ambos os lados dessa básica vesica piscis há desenhos de videira e folhas, e, no meio, existe uma vareta vertical, que parece brotar da vida da planta, na base, ou mergulhar nesta. (...)

Passei a pensar na vesica piscis, a imagem de dois círculos que se sobrepõem, como uma metáfora visual daqueles momentos em que os mundos se sobrepõem ou interpenetram, e a vida está imbuída de profundidade e significado. Para mim, essas são "experiências da vesica piscis": intersecções da intemporalidade com o tempo. Momentos que ocorrem no tempo e fora do tempo, quando o mundo visível e o invisível se interseptam; quando o mundo arquetípico e o mundo tangível se encontram; quando o Céu e a Terra, o mundo superior e o inferior, se tocam num instante liminar.
   
Neste caso, é inteiramente adequado que esta imagem esteja ligada a Glastonbury, onde se pode atravessar as brumas de Avalon e beber no poço sagrado, na imaginação literária e na lenda.


in Travessia para Avalon, de Jean Shinoda Bolen, Planeta Editora
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